O jantar

 

O jantar estava delicioso, temperado com cuidados e carinhos especiais além das especiarias de costume, aquelas famosas, que serviram de pretexto para que as tais armas e barões assinalados viessem, entre gente remota, edificar um Novo Reino, como canta Camões.

Meu cão, depois de comer seu quinhão, procura um canto, enrosca-se, se o tempo está frio ou se espicha, se faz calor, e dorme. Nós e nossos anfitriões, talvez sentíssemos o mesmo impulso, mas fomos para a sala, onde quem se espreguiçou sobre o tapete, numa preguiça que só aos gatos é dado espichar, foi a gata.

Não, não me interpretem mal, falo de uma gata mesmo, felina, de unhas cuidadas e afiadas, capazes de deixar marcas gotejadas de sangue na pele. Persiste ainda a confusão? Pois que se diga tratar-se dessas gatas que, quando no cio, ninguém pode suportar - gata bicho, que mia e tem rabo.

Ora, ora dona Sabrina, sempre se poderá encontrar em tudo similaridades e ilações mas, por mais que tenha o animal emprestado o nome popular da espécie para alcunha de guapas e fogosas moçoilas - o que sugere haver em comum algo, ou muito, do jeito de ser e se comportar -, o rabo era um rabo mesmo, peludo e comprido e que se diga mais, para esclarecer de vez: a gata que se espreguiçou no tapete também tinha bigodes, longos, de poucos e compridos pelos, a se eriçar do focinho como antenas. Fica claro, assim?

Ali, depois de saciada essa exigência do corpo, que nos lembra, a cada dia, que o alimento da véspera já não serve mais, o assunto da conversa derivou para os felinos e, em particular, para as gatas domésticas, assim batizadas por Linneu: Felix Cattus Domesticus.

Ora, era disso, apenas, que queria falar agora, como falamos naquela noite e, mais especificamente, das gatas no cio e de seu surpreendente comportamento. Pois minha amiga, com uma longa experiência de dona de várias gatas, a certa altura observou: Só pude compreender muito da natureza feminina depois que criei minha primeira gata! Aprendi muito com elas. De observá-las, acabei me conhecendo melhor...

Essa observação me soou fantástica e assustadora. Pela coragem da confissão e pela verdade que ela pode conter. É claro que para poder entendê-la seria necessário ter convivido com uma gata - de quatro patas, rabo e bigodes - por algum tempo, ou várias, de preferência. Para entendê-la por inteiro, seria preciso, ainda, ser mulher.

O que sei é que, volta e meia elas, as mulheres, me surpreendem, apesar de minhas barbas brancas e outros pesares O ser feminino aparece onde menos se espera...

Queria falar dessas coisas, mas sou interrompido por uma notícia. Chega através de uma mulher, é claro. Vem das paragens onde os filhos dos tais barões assinalados misturados com a gente remota somou ainda o sangue dos olhos claros e cabelos loiros para temperar.

É uma mensagem do Recife e, é óbvio, chega quase quinhentos anos depois da gente Lusitana, que calou tudo que a antiga musa cantava, e disputou com os holandeses, palmo à palmo, aquelas praias e coqueirais. Valeu-me boas gargalhadas e atiçou o ímpeto de a especular sobre coisas que é melhor calar.

Por isso, depois de obter o imprescindível nihil obstat, limito-me, a reproduzir o trecho:

Saiu às ruas carnavalescas da cidade, assíduo e convicto bloco composto de mulheres viúvas, solteiras, descasadas e virgens, intitulado "Mulher Também Tem Cu".

Combatido ferozmente pelas representações gays de todo o país, sob a alegação que elas não têm idéia de como para um homem custa dar esta pequena e ruidosa parte do corpo, o bloco feliz e zombeteiro desfilou seus abundantes rabos nos quatro dias de Momo, sem dar ouvidos aos seus rivais.

 

Publicada em 03 de março de 1999

 

 

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