autorretrato 

L'Étranger

06/11/12

Domingo, completaram-se dezenove anos da morte de mamãe. Em troca de mensagens com minhas irmãs, por algum tempo persistiu uma dúvida sobre a data exata, esclarecida, a seguir, pela associação com outros fatos e idades. À noite, lembrei-me de "O Estrangeiro", L'Étranger, romance de Albert Camus, lido até a metade - é longa minha lista de romances abandonados em meio! - há muitíssimo tempo.

Voltou-me, nítida, a primeira frase e quase o primeiro parágrafo. Até hoje, eles me encantam. Ei-los, no original - sim, o livrinho, com data de 2 de março de 62, é edição da Gallimard, em sua língua original - e em tradução livre:

"Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J'ai reçu un télégramme de l'asile: 'Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingués.' Cela ne veut rien dire. C'était peut-être hier."

"Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: 'Mãe falecida. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.' Isto nada significa. Talvez tenha sido ontem."

Este parágrafo se me tornou inesquecível. Leio e releio estas 34 palavras como um poema. Não sei por que. Portanto, não surpreende que me lembre dele ante as dúvidas sobre a data da morte de mamãe.

No correr da vida cresce o número de mortes relacionadas conosco mais de perto. A medida que nos aproximamos de nosso próprio fim, se amplia a lista daqueles com quem nos relacionávamos e já não existem mais. A morte é o ato terminal de cada vida. Esta a que nos apegamos como os recém-nascidos, por reflexo, a um dedo a ele estendido. Com tanta volúpia, que a morte nos parece absurda.

de um slide destruído pelo tempo
de um slide destruído pelo tempo

Todavia, a morte de cada folha, de cada folíolo se nos afigura natural e sabemos que a floresta sobreviverá por um tempo desmesurado. Ontem mamãe morreu, ou talvez amanhã... nunca se sabe.

NOTA: Ao tentar 'salvar' o texto com o título do livro de Camus, descobri já o ter escrito, quase idêntico, há dez anos.
Adotei, então, o título em francês.

Tue, Nov 6, 2012 at 8:53 AM

Querido Clode,
Como tenho pensado em você e no prazer de receber notícias, de estar um pouco próxima de você. Leio então o L'Etranger e chego a me arrepiar.
Quanta coincidência! Estou trabalhando esse livro com alunos , o que já o fiz muitas vezes. Gosto muito do livro, da maneira como Camus escreve. O incipit é obrigatório em todo curso de literatura. Como vc bem o diz é um poema. Lindo. Curto. Direto. Todo o sentimento está contido nas poucas palavras que parecem até mesmo estarem vazias de sentimento.
Segundo ponto no teu texto, a presença da morte, as perdas, nosso caminho pela vida. Como essas questões estão presentes na minha vida! Poderia acrescentar também a solidão, mas certamente será tema de outra crônica lindissima.
Beijos
Celia

Querida prima,

As coincidências despertam em nós a superstição, dando eventuais significados ao fortuito, à mera coincidência. Jung chegou a elaborar uma tese, perplexo diante de 'coincidências significativas', como as chamou em seu "Sincronicidade". Fiquemos apenas com o poder de um belíssimo texto capaz de nos marcar fundo. De todo modo, é um prazer ouvir sua voz, ainda que escrita.

Estive no Rio, há alguns dias, e me encontrei com outra prima, que há muito não via (filha do irmão de papai), por intervenção direta da Mima. Foi delicioso e, na ocasião, lembrei-me muito de você. Sabes que sou um quase eremita, mas solidão é um desafio grande demais.


November 6, 2012 1:00:46 PM GMT-02:00

Grande D. Emilinha! Sempre junto do Professor Jorge. bj

      sem assinatura

Difícil acreditar que não sejas minha irmã!


November 6, 2012 2:53:26 PM GMT-02:00

Cláudio!
que coisa mais linda, meu irmão!
adorei
muito profundo tbm, pq a morte sempre nos assusta e, apesar de durante toda a vida estarmos a cada dia mais perto dela, passamos a nos dar conta disto com mais clareza a medida em que a idade avança ....

muitos bjs

Maren

Lindo mesmo é o parágrafo de Camus, o incipit, como o chamou nossa prima a me ensinar palavra nova. Não li a história, mas ficou-me, indelével, esta obra-prima.


November 7, 2012 8:55:46 AM GMT-02:00

:)

      sem assinatura

Dois pontos, fecha parêntese e o universo sorri!


November 7, 2012 12:11:06 AM GMT-02:00

Gostei muito,talvez pq vc conseguiu exprimir aquilo que eu gostaria e não conseguiria expressar.

 O Estrangeiro me marcou muito,e recentemente,depois de assistir à peça,um monólogo com um ator
maravilhoso que minha pésssima memória para nomes me impede de lembrar, o reli.

Bj,Brte

Que bom que gostou. Sabe quem também gostou, porque gosta muito do livro? Celia, nossa prima. A cartinha dela, como todas, está publicada no rodapé da crônica online.

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