Lugar-Comum

Eu adoro os lugares-comuns! - declarou ela com todas as letras e longe de todo lugar-comum. Eram três horas e os dois já tinham esvaziado muitas latas, que já não são mais recipientes vazios de folha-de-flandres, como definem ainda alguns dicionários, mas de folha de alumínio, mineral sequer sonhado quando nossos antepassados perceberam novos e estranhos efeitos advindos da ingestão de caldo de cevada fermentado...

Conversava-se há quatro ou cinco horas, sentados em minúsculos e incômodos banquinhos, apesar de haver sofás e almofadas macias na sala, ao lado da cozinha. Assim como a velha bebida, permanecia o hábito de reunir-se à roda do fogo, precursor dos microondas. Falou-se de tudo: das piadas mais bobas a discutir ser, ou não, filosofia o que se discutia. O ponto que esquentou mais o debate acabou esquecido, tais os desvios e novas discussões que provocou: disse que não conseguia ver o homossexualismo como coisa natural...

Começamos a esgrimir palavras. O que seria "natural" e o que deixava de ser? O que é produzido pela arte ou pela indústria, ensina ainda o dicionário, é "artificial", e completa: não natural. O Homem se vê e se define como ser impar em toda a Natureza, em toda Criação. Eu, por mim, olho e confirmo: é óbvia essa singularidade, mas tento, ou melhor tentamos encontrar o elemento inquestionável que marca essa diferença e passamos a rodar em círculos, milhares de vezes pisados e nem nossa visão turva, nem a lembrança de visões alheias nos mostra a saída.

Estranho animal, que se delicia com esse mundo abstrato, de idéias, capaz de perambular tantas horas na mata fechada de pensamentos confusos, no cipoal de palavras - símbolos de símbolos, capazes de evocar emoções e memórias adormecidas em profundezas que mal suspeitamos... Estranho animal!

A consciência de que vai morrer nos parece o diferencial mais satisfatório. Mas como saber se a cadela com câncer pressente seu fim? O roteiro da aula na tevê definiu os egípcios como um povo que só pensava na morte e passava a vida toda se preparando para morrer... Mais surpreendente, talvez, é passarmos toda a vida sem nos prepararmos para esse encontro inevitável. Daí ao indivíduo, à massa e a um ser maior era um passo apenas, nem isso, um escorregão.

O movimento para deixarmos de ser "falados" e "pensados" pela publicidade, pelo jornal, pelo rádio, pela televisão, pelas igrejas - o processo de "individuação", como queria Jung. Descolar-se da massa, comandada pelos poderosos e pelos meios de que dispõe para propagandear as crenças que lhes interessam. Depois, como a criança que mal se sustenta nas perninhas, ensaiar uns primeiros passos na percepção de que a vida é muito mais larga, muito mais ampla, muito mais profunda do que a perspectiva centrada em nosso eu...

Mais uns passos para ficar claro o absurdo de uma vida ser apenas o esforço incomensurável para alimentar as vaidades desse eu. Transformar a vida numa batalha para deixar um rastro de si. O desejo inconfessado de virar estátua em praça pública, ou ícones equivalentes nos guinessesbuques ou listas da Fortune. Lutar e dar mais importância à vitória do que ao outro, também ser humano, que também enxerga a vida da ótica obliqua de seu próprio umbigo...

Ah, a árvore frondosa e milenar continua a perder cada uma dos folíolos de suas folhas em cada outono para se vestir do verde novo e imaculado em cada primavera! - E ela declarou, com todas as letras e longe de todo lugar-comum: Eu adoro os lugares-comuns!

 


Composto no CareWare Arachnophilia 1.5


Publicada em 23 de novembro de 1998

 

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