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Medo de voar

05/10/09

Domingo úmido de um ano pródigo em chuvas. A lua cheia só apareceu sexta-feira, dia singular de muito sol e calor. Um som põe um ponto de interrogação e impõe a procura de explicação: o diálogo de piados é explícito e, a dúvida, impossível.

Os dois chamados fortes dos bem-te-vis se alternavam com a resposta tímida do filhote, à porta do ninho em forma de tubo empilhado sobre os dos anos passados no estreito espaço entre o transformador de energia elétrica e os tubos por onde circula o óleo que o refrigera.

A cena não me era inédita e, talvez, já a tenha descrito aqui. Hoje, o casal pousou num abacateiro quase sem folhas agora, defronte ao poste com o transformador. Dali chamavam o filhote - haveria mais de um? -, quase sempre com um chamado simples. Às vezes, porém, cantavam as três notas famosas - 'beeeem' 'te' 'vi'. Mudariam, assim, o assunto da conversa? Estavam pousados longe um do outro, cada um em uma extremidade da copa.

Às vezes a vida impõe lançar-se no precipício sem saber da força das próprias asas e, antes de domar ares e ventos, a gravidade apavora a quem conhece a primeira lei de Newton tanto quanto a quem de todo a ignora.

O filhote se agitava a cada apelo dos pais e retrucava com voz diminuta e discreta agitação. Se sobreviver, aprenderá sobre os encantos e os riscos de voar e descobrirá os privilégios dos pontos de vista nas alturas. Ver é uma dádiva incomensurável.

O gato velhíssimo perdeu a visão. Cego, percorre ainda todos os cômodos da casa que sabe de cor. Anda com cuidado, devagar, mas não pode evitar os esbarrões e, volta e meia, bate o focinho num obstáculo.

Ao alçar vôo ampliam-se os horizontes, alarga-se a graça do enxergar e, ainda assim, tememos voar.

Por volta do meio-dia, estava vazia a porta do ninho e nenhum bem-te-vi chamava.

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