de esporadicidade imprevisível

O confessionário

09/01/18

Hoje meu neto caçula completa 14 anos. Um ser integralmente do terceiro milênio. Muitas pessoas previam, em meados do século 20, o "fim do mundo" antes do ano dois mil. Citavam como afirmação de algum profeta: "a mil chegarás, mas a dois mil não chegarás". Aqui estamos, no final da segunda década do milênio três.

Provocado pela data, busquei na memória cenas de meus quatorze anos e, entre outras, encontrei um quadro felliniano para coroar as trapalhadas de uma idade difícil. No episódio em questão, existia uma "Saraguina" a transtornar o transbordamento hormonal próprio da idade; um flagrante; um pacto mãe-filho, a ocultar do marido e pai o acontecido, em troca de uma confissão com objetivo de reaproximar o jovem, já descrente, dos ritos e liturgias do catolicismo.

Tal confissão, realçada por muita culpa e arrependimento, é a cena digna de Fellini, em particular, em seu Otto e Mezzo. Não sei se existiu alguma interferência maternal, junto aos monges do Colégio de São Bento, onde eu ainda estudava, para estabelecer as circunstâncias da "confissão de retorno", pois já me afastara há algum tempo de todo ritual religioso.

O fato assustador foi terem designado, para confessor, um monge impossibilitado de se locomover, preso a uma cadeira de rodas e, portanto, impossibilitado de entrar no confessionário! Precisei, pois, ajoelhar-me ao lado da cadeira de rodas, em uma saleta contígua à igreja e fazer a confissão prometida sem o arcabouço clássico, onde se estabelece uma separação visual entre o pecador e o confessor. A importância crucial do confessionário mostrou-se, ali, gigantesca e o padre, cara a cara, me pareceu um torturador - Fellini puro, no melhor estilo!


cena do filme Fellini otto e mezzo
cena do filme Fellini otto e mezzo


Cumpri o prometido, minha mãe nada contou a meu pai e viva a diferença! Sessenta anos fazem muita diferença, ainda bem.





Do Houaiss: confessionário - Datação: 1551

substantivo masculino
1 Rubrica: religião.
local, nas igrejas católicas, reservado às confissões e onde o confessor se senta para atender aos penitentes
2 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: mobiliário, religião.
espécie de armário largo de madeira, fechado na frente por cortina,
situado em local tranquilo nas igrejas, com janelinhas laterais cobertas por cortina,
tela ou treliça, por onde o padre, sentado no interior,
ouve as confissões dos penitentes, ajoelhados em um degrau externo

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Tue, 9 Jan 2018 11:00:54 -0200

Lindo, adorei !
Parabens pro neto.
O nosso Miguel faz na quinta-feira 07 anos, metade do caminho do seu.
Bj

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Obrigado.
Esta metade só acontece uma vez... Que legal!
Parabéns para o Miguel.


Tue, 9 Jan 2018 11:11:04 -0200

Caro amigo

Nós que estudamos em colégios religiosos ficamos marcados para sempre.
Embora racionalmente os dogmas e os traumas da época tenham sido superados, lá no fundo as marcas permanecem.
No meu tempo me assombrava que os religiosos diziam que a terceira profecia de Fátima era que o mundo acabaria em 1960.
Era 1954 e eu só tinha 10 anos e imaginava que viveria apenas até os 16 ! Quanta maldade ! O trauma passou mas a memória guardou.
Até hoje o cheiro de incenso das missas diárias durante o mês de maio me dão náuseas.

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Amiga,

Não há a menor dúvida disto! O Fellini, em muitos filmes, é prova também da permanência dessas marcas. Fiz metade do pré-primário no "Nossa Senhora de Fátima", mas não sabia desta "profecia" - eu era muito pequeno... Na capela deste colégio o incensório me fascinava e o cheiro de incenso me era agradável...

Nossa parte subjetiva sempre é fascinante.


Tue, 9 Jan 2018 11:21:45 -0200

Uma diferença a mais pra você computar: hoje, são raríssimas as igrejas que têm confessionário, pelo menos aqui no BRasil. A confissão, em geral, acontece cara a cara: confessor e pecador, cada um em seu banco ou cadeira, colocado/as meio de lado um/a do/a outro/a. QUando não se está confessando por imposição materna ou de quem quer que seja, acho que não há problema alguma nesta acomodação.

Obs: se vc publiucar este comentário, por favor, não me identifique.
Bjs e parabéns pro Zé, pro avô orgulho e CLAAARO, pelaIMPECÁVEL (dispensa confissão, portanto) crônica.

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Eu jamais identifico quando o e-mail vem sem assinatura!

Obrigado.

Em 1958 o cara a cara com um monge aleijado foi terrível para um rapaz de apenas 14 anos. Como disse, pareceu-me a Inquisição, embora não acredite saber, então, o que fosse Inquisição. Pareceu-me comparável à cena do "ajoelhar no milho" de Oito e Meio.

Acho mais cruel a confissão sem o confessionário e mais difícil se acreditar estar "falando com Deus"...


Wed, 10 Jan 2018 09:08:26 -0200

Oi, Clôde

Histórias paralelas, mas a minha foi mais tardia - e talvez menos honesta (ou mais oportunista?)
Também estudei em colégio católico (a partir do antigo ginásio e até o fim do colegial) e cumpria direitinho
todos os rituais esperados (até mais do que o usual - bem CDF, já que era pra fazer, eu fazia). Aos 16 anos,
no primeiro colegial, percebi que não conseguia mais ter fé - mas, pra não criar caso, continuei cumprindo os rituais
básicos. No primeiro domingo depois da formatura do colegial comuniquei a minha mãe que não iria mais à missa.
Filha mais velha, foi um carnaval: meu pai, agnóstico, achou ótimo, mas não impediu que minha mãe me levasse pra
conversar com um dominicano (na época, como você deve lembrar, os dominicanos eram os padres mais progressistas).
O papo também foi cara a cara - não era uma confissão, e sim uma conversa: ele queria saber o motivo de minha decisão; e eu disse o que me parecia (e ainda acho que é) a verdade: que eu não conseguia acreditar no sobrenatural.

Nos anos seguintes, minhas irmãs também acabaram abandonando a igreja. No caso delas, sabe lá porque, já não houve reação de minha mãe, passou em branco. Anos depois, quando me recusei a casar na igreja, foi outro drama - que elas também não enfrentaram, porque queriam um casamento nos conformes - ou, quem sabe, pra não entrar com conflito com as famílias dos noivos...

Bjs
Ana

Oi, Ana,

Obrigado pelo relato e pela confirmação. São de fato histórias paralelas. Meu pai também era agnóstico e os monges beneditinos, bem menos progressistas que os dominicanos. Enfim, somos frutos de uma mesma sociedade...


Sat, 13 Jan 2018 18:45:30 -0800 (PST)

q q foi essa confissao q nao podia contar ao papai?

      sem assinatura

Não tem a menor importância...
Fica a critério de sua imaginação.


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