Obsessão

24/09/97

Rodamos à volta de três ou quatro obsessões pela vida afora. Outro dia usei uma imagem que mora dentro de mim. O leitor ou leitora, se algum houver, certamente terá outras imagens, suas e, por isso mesmo poderosas para ele, para quem a minha é apenas mais uma, que logo se esvanecerá na memória como trem na paisagem. Vejam este exemplo: como trem na paisagem. Que pode significar para cinco bilhões de pessoas: esmaecer na memória como trem na paisagem? Nada, ou muito pouco. Ainda mais agora, que tantos bilhões vivem em cidades sem paisagem, ainda mais agora, quando há tão poucos trens...

No entanto, se digo que algo se dilui com o passar do tempo como um trem que some na paisagem, entram em cena outras lembranças, detalhes da experiência pessoal, intransferível, aleatória, obra de todos os acasos que tecem nossos neurônios. Neste exemplo, entre tantas outras prováveis associações, sei que muito pequeno, ia a cada verão para uma cidade serrana, para um sítio do qual quase nada lembro, numa viagem fantástica, de trem. Não um trenzinho qualquer, como os de hoje, que podem ser muito mais isso e aquilo, mas não têm um milésimo do encanto de uma Maria-Fumaça. A pujança - e pujança ainda é pouco adjetivo - de um trem à vapor, só pode saber quem viu de perto, quem viajou neles, ainda mais se criança, quando mistura realidade e sonho com uma desenvoltura que, depois, buscamos pela vida afora sem jamais recuperar. Tenho muito mais vivos sons e imagens da gloriosa Maria-Fumaça do que da Chácara do Netos, nome do tal sítio, pois era de um tio-avô. E cheiros! Até cheiro de máquina macho se impregnou para o resto da vida.

Mas tudo isso é o de menos, no caso da imagem fortuita que calhou de início e ameaça roubar a cena. Ao dizer: esmorece ao longo do tempo como trem que desaparece na imensidão, vêm à memória de pronto, dois ou três versos de uma canção. Ora, cada canção que alguém cita e gosta muito, está ligada a um dado episódio ou período da vida dessa pessoa. O significado que tem para ela é único, não existe para ninguém mais. A canção que só tem esse sentido para mim, neste caso, é "Time", do Tom Waits. Uma hora lá diz: "and the memory is like a train,/ you can see it getting smaller as they pull away./ All the things you can remember/ till the things you can't forget." E as palavras, óbvio, são apenas as palavras da canção - estas aí. Nada de mais. Claro que em nossa complexidade de mamíferos frugívoros de frutos proibidos das árvores armadilhas semeadas pelo bom Deus, talvez estejamos misturando nelas, palavras e lembranças, até o sabor esquecido do conhecimento do bem e do mal...

Mas não era nada disso que queria dizer. Ia falar apenas de uma outra imagem, dessas que calam em nós e nem sabemos porquê. Outra, que mencionei em outro dia e que, por alguma razão, voltou-me hoje junto com a certeza de que rodamos, rodamos e não saímos do mesmo lugar. Disse e repito: ficamos a dar voltas como bicho enjaulado - eis a imagem! Era só isso para começar...

Você já foi, leitora preferida, àquele belo jardim? Belo? - retrucaria a linda leitora, cheia de dúvidas quanto ao correto destino do adjetivo. E eu seria obrigado a explicar: das raras coisas desse tipo, abertas e em contato com a Natureza, em que São Paulo suplanta a maravilhosa cidade. Sim, o Jardim Zoológico paulistano é uma belo passeio, principalmente durante a semana, sem a multidão dominical. Belo, na minha opinião, salvo exatamente, pelos bichos enjaulados. E é aí que queria chegar.

Os pobres rodam em círculos, cheios de energia, com visível potencial para correr quilômetros de campinas, saltar riachos e Amazonas, escalar ribanceiras e Himalaias, ir do Alaska à Patagônia e, no entanto, têm ali seus metrinhos quadrados para rodar e rodar. E só! Nos quadrinhos do Pato Donald, as preocupações do Tio Patinhas eram representadas assim: o velho tio rodava em círculos até cavar um fundo sulco no chão. Em grandes preocupações desaparecia até à cintura. A imagem dos bichos enjaulados, rodando em círculos eternos, a procura de uma brecha para escapar, é uma dessas que, para mim, deve ter uma força e um significado que não tem para uns cinco bilhões de pessoas, no mínimo.

Aquilo que iria contar, e já esqueci, evocou-me essa imagem recorrente. Quem sabe ia dizer que apartamentos me lembram jaulas? Ou, talvez, mencionar jaulas que nós mesmos construímos para nós? Aí, lembrei que ainda outro dia já tinha repetido essa bobagem aqui e, com isso, ficava claro, óbvio, inequívoco que, de fato, rodamos à volta de três ou quatro obsessões pela vida afora...


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