Oráculos


4/11/97


Onde os oráculos de nosso tempo? Ah, não falo dos mendigos da boa fé! Estes estão por toda parte. Nos templos e feiras - vendilhões esquecidos pelo açoite atroz. O padre com sua sacola, a cartomante sem Machado de Assis. Os jornais mantém a coluna pelas mesmas razões: há sede da palavra oracular e, como bom traficante, publica-se um horóscopo como se publicavam os palpites para os páreos da noite - vende jornal. Ela afirma sem pejo: só compro o jornal para ver os quadrinhos e o horóscopo. A outra, talvez, veja além disso o resumo da novela que verá mais tarde, na televisão. Há trinta anos conheci um cara que escrevia o horóscopo de um jornal da capital. Era repórter policial e tinha aquela tarefa como um bico, para agregar mais uns cobres ao seu salário. Nem ele, nem ninguém na redação acreditava em horóscopo. Pingava aquelas duas linhas para cada signo totalmente no chute. Punha o que lhe dava na telha - qualquer coisa. Não duvido nada que muita gente, ao ler seus prognósticos cotidianos, resmungasse: os astros não mentem jamais... O sujeito provavelmente teria lá os seus problemas e razões - mulher, filhos, prestações, papagaio, sogra, amantes, o diabo que fosse, pouco importa - e além do mais fazia exatamente o mesmo que se faz nos templos e em praça pública com a bênção e conluio dos governantes.

Onde os oráculos de nosso tempo? Aqueles, que não permutam dons por pão? Aqueles, que não cuidam da queda da bolsa ou futricas e fofocas de comadres? Aqueles, que respondem com enigmas, para que cada um busque em si a resposta que procura. Aqueles, que perguntados sobre o ouro e a prata falam da miríade de ouros e cores inéditas em cada pôr-do-sol. Onde se escondem e profetizam os oráculos de nosso tempo?

Cerrem-se as cortinas. Cesse o ruflar das folhas. A abóbada está prestes a ruir. Descansa em paz, mestre Affonso Domingues, é outra a abóbada que cairá. A do Mosteiro de Santa Maria da Vitória da Batalha, em Aljubarrota, certamente ainda está lá ou, pelo menos, viverá eterna, nas páginas de Lendas e Narrativas, como o próprio Alexandre Herculano. Aguçai vossos ouvidos que palavras soltas de oráculos antigos ainda se podem escutar. Que proveito tira o homem de todo trabalho com que se afadiga debaixo do sol?

Ah, uma voz de dois milênios! Há 23 séculos as pergunta ecoa! E o mesmo homem corre, e sempre, desde que nu saiu do ventre materno até o túmulo que o aguarda escancarado. O que mudou? Algo mudou: antes, e isso sublinha o cronista do Eclesiastes, também nu éramos devolvidos ao chão. Hoje, se prefere voltar as costas à morte e aos mortos. No dizer dos capitães de indústria, terceirizou-se a tarefa, pois assim se esquece, ainda mais que, nós também, um dia, nos faremos sepultar. Ah, que proveito tira o homem de todo seu trabalho?

Mas isso foi ontem, 23 séculos é nada no tempo que o homem perambula no planeta azul. Muito antes, na China de que pouco se sabe, oráculos mais milenares sussurravam em sinais que transpuseram espaço e tempo para podermos chamá-los, hoje, de hexagramas. Quantas e que traduções do falar por enigmas, para que cada um busque em si a resposta que procura, próprio do verdadeiro oráculo, através de tantas línguas, alfabetos e costumes, até o I Ching, hoje, traficado entre catuabas, serpentes; amuletos, talismãs, fetiches, por atacadistas e camelôs da sorte, do acaso e do além. Mas que palavra vem de tão longe? Desintegração. E a leitora mais incrédula já murmura: pura invenção. Que posso? Mas não é não. "Não é favorável ir a parte alguma", completa, a tão suspeita tradução.

Algumas profissões (talvez todas, conforme se encarar) por sua própria natureza não poderiam ser profissões, no sentido de cobrar pelo serviço feito, já que a cobrança, em si, destrói o que se fez. A de médico é uma delas - que o diga o padre Vieyra, como o diz, efetivamente, em seu belíssimo "Espelho de Enganos", A Arte de Furtar. Outra, já o adivinha até o mais distraído dos leitores, é a profissão de oráculo, curandeiro, pajé, feiticeiro, benzedor, bruxo, pastor ou padre, sem esquecer os rabinos, que são, no fundo, tudo a mesma coisa. Fico a imaginar que, mais um pouco, e todos esses vendilhões de promessas no além ou no amanhã (exatamente a mesma coisa) começarão a adotar em suas empresas outras técnicas (muitas já estão, há muito, incorporadas...) da moderna administração de empresas. Aceitarão a idéia, por exemplo, de que é preciso terceirizar. Imaginem que resolvam, digamos, terceirizar a confissão. Contratar, suponhamos, pais e mães de santo para o enfadonho trabalho de escutar os pecados alheios... Não me surpreenderia nem um pouco se, diante disso, muito banqueiro e político e muita perua e grã-fina sentissem uma súbita vocação para o terreiro, a repentina possessão por um santo qualquer...



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