Pascoal

 

Pascoal coçou a cabeça e passou várias vezes os dedos na careca, como para pentear cabelos imaginários. Fazia calor e o que ele queria mesmo, ou pensava que queria, era estar numa cachoeira longínqua, no meio de uma mata ensolarada, sem mosquitos para aporrinhar e pelado, nu como os demais bichos pelas redondezas, pois jamais acreditou que qualquer nudez merecesse castigo. Olhou as pernas de Malvina, que balançavam indicando certo nervosismo e mostrando, nesse balançar, ora mais, ora menos das coxas fortes, queimadas de sol, sob aquele pequeno pedaço de pano roxo, à guisa de saia, e o todo seguia quadris a fora, de fêmea propícia, que dizem atrair o homens por indicar receptáculo adequado à boa formação de saudáveis bebês. E Pascoal achou que aceitaria a companhia de Malvina, sob a ducha forte e fria da cachoeira, nua como ele, sem castigo ou pecado...

Fora, buzinas dos automóveis e motores de ônibus, se tornaram de repente, mais furiosos que tempestade de Wagner, e fizeram Pascoal despencar outra vez na monotonia da redação. Coçou a cabeça e falou:

Malvina... - teve vontade de dizer "minha menina", talvez apenas pela rima, mas engoliu estas palavras com medo de cair em novos devaneios, disse mais uma vez: Malvina, e prosseguiu. Não se pode começar uma matéria sobre o funeral de uma personalidade assim, por mais que você admire o morto, não pode começar dizendo - e Pascoal leu: "O morto era o mais lindo de todos." Pascoal falava quase automaticamente Por baixo daquela careca uma confusão o dividia. Era impossível não ver o corpo provocante da estagiária e seu jeito brejeiro e, ao mesmo tempo em que afirmava ser impossível começar a matéria com a afirmação categórica da beleza do defunto, se perguntava se, em vez de Malvina fosse Nelson Rodrigues, a matéria não começaria do mesmo jeito. O dramaturgo poderia, até, ser mais contundente - "O cadáver era mais lindo que qualquer outra pessoa naquele velório.", talvez.

Malvina, a estagiária improvável de um jornal impossível, reagia à morte com a mesma perplexidade que qualquer um de nós. Provavelmente, misturava os sentimentos pelo felecido e sua obra com os critérios próprios de beleza. Talvez se referisse a uma beleza interior. A morte de uma personalidade, de alguém muito conhecido ou querido, chega como uma bofetada, para lembrar nossa própria efemeridade.

Nas grandes cidades, de asfalto e concreto, a infância é vivida longe das mortes. No máximo, a criança tem oportunidade de ver a morte de baratas ou cupins, que invadem os apartamentos na primavera. Os bois, as cabras, até gatos e cachorros morrem longe. E quando morre alguém próximo, gente como a gente, preferimos manter as crianças distantes. Não sabemos como lidar com o fato, nós, adultos e tememos a espontaneidade dos pequeninos.

O que dizer diante do morto? Por que falar? O cadáver não escuta, pelo menos prescinde das palavras. Fala-se para os que ficam, é óbvio. Louva-se o falecido, também é óbvio. Ninguém toma a palavra para falar mal do morto diante do caixão. Pior, no entanto, são os repórteres de tevê, obrigados a "cobrir ao vivo" um sepultamento e que se vêem com um microfone na mão sem saber se descrevem o que todos testemunham, se deixa o som aos oradores de pé do túmulo, se estão dando a entonação correta ao que dizem, se buscam os trechos da biografia do falecido para encher o tempo...

Não foi diferente hoje, no enterro de Dias Gomes. Um país que tem nas intermináveis novelas de televisão um de seus mais autênticos e importantes produtos, se viu diante da Morte com o desaparecimento repentino de um dos mais férteis e talentosos autores dessas novelas. Assim como, uma novela deve acabar - apesar de sempre parecer infinita - tudo precisa de seu ponto final.

 

Publicada Quarta-feira, 19 de Maio de 1999

 

 

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