Pesadelo

 

Olhe as notícias. Não seriam as mesmas de ontem? Dizem que uns ganharam, outros perderam. Inevitável, já que alguns ganham o que os outros perdem. Não é sempre assim? Nem só na natureza nada se cria, nada se perde. Da mesma forma, como na natureza, algumas dessas transformações exalam um cheiro insuportável. A notícias dos jornais, de papel virtual ou não, lidos por quem compra na banca ou pelo locutor no rádio ou televisão, as notícias não parecem trazer o novo. Se repetem sem sequer a surpresa que a aurora de cada dia sabe sempre inventar.

É preciso muita energia para que o novo possa de fato existir. A preguiça prefere a fórmula, o caminho bem pisado e conhecido. Tem pavor de não saber aonde irá chegar. Irão me dizer que é o único jeito, que sem previsão - planejamento, cálculo frio, matemático - as coisas nunca chegariam a acontecer. É verdade. Uma ponte, uma casa, um automóvel ou outra máquina precisam de um arquiteto, dependem do calculista e de todos os gênios que nos antecederam, há milênios, e descobriram ou inventaram os tijolos do gigantesco edifício do conhecimento.

Arquimedes, Galileu, Newton, Da Vince - a lista seria infinita e deveria incluir muitos que, sem dúvida, deram sua contribuição e ficaram esquecidos. Somos todos herdeiros dessa turma e usamos a herança sem qualquer constrangimento. Esse negócio de herdeiros privilegiados é coisa recente, do século que inventou a affluent society - a sociedade da opulência, da abundância, do lixo mais rico etc.

As notícias não trazem novidades. Refletem o que somos, o nosso modo mais escondido de ser. Neste aspecto, são verdadeiros sonhos coletivos, a nos mandar avisos na vigília, como os sonhos que sonhamos dormindo, por meio de símbolos e linguagens cifradas, sobre o que não anda bem, o que precisa ser mudado, os perigos que nos espreitam, a nós humanidade, nas próximas esquinas, com ou sem reveillons de séculos e milênios. Por isso, se olharmos com alguma perspectiva, o noticiário pode ser, também, uma espécie de espelho, que refletem aspectos de nosso fundo que tentamos ignorar, disfarçar, esconder.

Por isso me assusta constatar que o grande tema das notícias é, sempre, o dinheiro. A mercantilização da vida é assustadora. As pessoa tem importância relativa, em função do dinheiro que possuem ou podem produzir. E não é apenas nos bancos que vemos isto. Aí, suponho que desde sempre o banqueiro tenha tido esse modo torto de olhar. Os jornalistas também, aqueles incumbidos de transmitir a novidade, são vitimas dessa miopia. E nós, que ouvimos ou lemos o que eles escrevem, como reagimos ao noticiário que fala da moeda, dos juros, da economia globalizada, dos indicadores disso e daquilo, das políticas econômicas e risco que elas podem correr se... se, por ventura, se desse prioridade às necessidades básicas dos que querem apenas o direito de viver: morar, vestir e comer com dignidade?

Olhe as notícias, podem ser assustadoras, quando as olhamos como sonhos da humanidade. Os pesadelos são terríveis, nos fazem acordar bruscamente, suados, apavorados. Com gritos de pavor, até. Quando esses sonhos tenebrosos, além de assustar, se tornam recorrentes e se repetem noite após noite, é urgente fazer alguma coisa. A humanidade são esses seis bilhões que estão aí e, sabe-se lá, mais quantos que viveram antes, para ensinar que o quadrado da hipotenusa iguala a soma dos quadrados dos catetos e tudo mais. E tem todos que estão a caminho... Mas só posso perguntar a mim, o que faço comigo, diante disso tudo, a partir do momento que o percebo... O que faço diante dos avisos desses pesadelos?

 

Publicada Quinta-feira, 27 de Maio de 1999

 

 

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