Prenúncio do inverno

29/04/11

A muitos parecerá incoerente, quiçá até meio absurdo mas, para mim, é natural e mesmo de se esperar: embora tenha me tornado um eremita, ao redor do qual cresceu o mato e a vizinhança, ao primeiro frio sinto inveja imensa das aves migratórias. Anteontem foi preciso pegar agasalho de lã; ontem, a chuvinha sorrateira se esforçava para umedecer ainda mais o ar.

Pássaros baterão asas rumo ao sol, à luz e ao calor. Vão em busca de ser sempre verão. Aqui, rumo ao inverno e na arrumação absurda de um espaço virtual - pôr ordem no infinito das entranhas de um computador! - encontro página antiga e a cada encontro destes dá-se um reencontro com quem já não sou mais e, apesar de tudo, persiste em mim.

Hoje, calhou-me a centésima primeira croniquinha publicada aqui, no já distante ano de 1998. Como espelho mágico capaz de me refletir no passado, releio e me espanto com o transbordamento de emoções, comum em outras quadras, com a serenidade imposta por tanto tempo acumulado. Se fosse contar a mesma história hoje, desenharia panorama muito diferente, capaz de transformar algumas certezas de então em pontos de interrogação.

O dia seguiu sob fina chuva para um final surpreendente: aos poucos, o céu se tingiu de forte luminosidade alaranjada, intensa, a partilhar a coloração com toda paisagem, como se fosse um alvorecer ao término do dia. Ainda chovia, o mesmo chuvisco aborrecido, ininterrupto. Além da luz especialíssima, infiltrava-se entre os troncos uma névoa inexplicável, a sugerir obra de um cenógrafo louco a acionar, por perto, poderosa máquina de fumaça à base de gelo-seco e fazer mais irreal o panorama.

O teatral efeito evocou-me a Idade Média só vista em gravuras e pinturas e parecia possível, a qualquer momento, emergir da neblina o cortejo do Inverno, irmão daquela Morte de foice na mão.

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