Processos

17/12/97


O professor vê a maior lógica em seu método de ensinar e deve haver, mesmo, com tudo ordenado, hierarquizado, classificado para ser apresentado de bandeja como um prato japonês. O que não tem lógica alguma é o jeito de aprender. O verdadeiro aprendizado é caótico, necessariamente. Parece mais a mesa árabe, com uma infinidade de iguarias diferentes, de onde cada um se serve em pequenas porções sem qualquer método previsível. Sempre me causou espécie - como, aliás, esta locução também - comparar o desfile do conhecimento humano, que a escola convencional nos propicia com as tempestades terríveis e vislumbres momentâneos iluminados pelos relâmpagos que, de tempos em tempos, abençoam esse ou aquele cérebro.

Pois é, dona Sabrina, ponha-se no lugar de um Newton, digamos. Mesmo depois de ter decorado, ainda que para passar na prova, que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na do inverso do quadrado das distâncias, diga-me lá, cara amiga, mesmo sabendo disso, alguma vez lhe causou espécie quando, por exemplo, um garfo caiu no chão? Cogitou, diante da queda de um talher, sobre a fantástica diferença das massas... mas não, dona Sabrina, ninguém falou que se estava comendo macarrão! Deixa quieto. Queria dizer somente que Newton não dispunha de todos os dados e explicações, elas só surgiram depois, justamente em função de sua "lei". Ele estava descobrindo as coisas! Não existia lei alguma, só o maravilhoso caos de seu pensamento!

Tentemos então Arquimedes, naquela cena famosa, quando saiu pelas ruas pelado e gritando heureca! Não, não me entenda mal, não estou sugerindo que faça o mesmo, além do mais, tudo indica que os gregos olhavam com outros olhos a nudez... queria apenas imaginar que a cabeça do sábio estivesse tomada pelo desafio de poder provar ao soberano se houvera fraude, ou não? Lembra da história? O rei desconfiava que os "metalúrgicos" da época tinham passado a mão em parte do ouro e feito a peça com uma outra mistura de metais. Arquimedes procurava um jeito de fazer a medição sem ter que desmanchar a obra dos ourives. Hoje seria muito fácil, mas falamos de dois mil anos atrás, não existia a hidráulica... não... dona Sabrina, Arquimedes não era encanador. Bem, deixa pra lá, pouco importa...

Queria só sugerir que todos esses processos são caóticos, desordenados, vivos, cheios de energia e de verdadeiras descobertas. Tem que ser assim. Falar, também, do quanto fico pasmo ao ver um professor chegar diante de uma turma de dizer: hoje vamos estudar tal assunto. Tomem nota. E começar pelo começo e seguir como mula cargueira a mesma trilha repisada, que só surgiu muito tempo depois, quando finda a erupção do vulcão da descoberta do tal assunto, a lava esfriou. Imagino as crianças... a "tia" chega e desfia seu rosário de conhecimentos com a monotonia de rezar um terço, ave-maria após ave-maria... não se preocupa em provocar a descoberta do prazer de descobrir, não cuida de estimular nenhuma "sacada" - aquele momento de luz em que o cérebro consegue enxergar o que antes não podia ver -, não está ensinado a aprender - processo onde até ela aprenderia também. Supõe-se portadora do saber e transfere, envaidecida, sua carga de conhecimento. É um método fantástico, da magnitude do tédio que produz! Infalível para extinguir a "sagrada sede de saber", como disse Einstein, "pois essa planta frágil da curiosidade científica necessita, além de estímulo, especialmente de liberdade; sem ela, fenece e morre."

Começa-se cedo, e cada vez mais cedo, mas o culto ao saber acumulado pesa por toda a vida, até a morte. Vi na revista, outro dia, a foto dos doutores com suas fantasias. Já presenciei a cena, uma única vez. A empáfia com que carregam sua "sabedoria" é ainda mais grotesca do que os punhos e golas cheios de babados e rendas, os botões dourados, os cordões e penduricalhos e cores berrantes dos cetins e tafetás de suas fantasias!

Esta máquina, que uso para escrever as bobagens de cada dia, pode acumular muito mais dados, lidar muito melhor com eles e, principalmente, numa velocidade incrivelmente maior do que minha cabeça. No entanto, não faz nem poderá fazer, nunca, o que um ser humano faz. O mais humilde, o mais analfabeto, o mais desprovido de razão. Se a escola vê os homens como meros computadores, não é isso que somos. Se acha que ensinar equivale a abastecer um banco de dados, as pessoas aprendem a transgredir e burlar pois na transgressão e na burla, talvez, estejam descobrindo o que não lhes puderam ensinar.



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