Quem dá mais?

15/04/98



Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras, mas não é difícil imaginar como surge um aforismo destes. Diante de certas imagens, vem espontaneamente. Não me parece um pecado São Tomé querer cutucar com o próprio dedo as chagas dos cravos nas mãos e nos pés de quem se dizia ressuscitado. Era apenas humano, um bicho sobretudo visual. Acreditamos no que vemos. Vejo, logo existo é muito mais universal e imediato que o penso, logo existo, de Descartes. Mágicos , ilusionistas e muito mais gente se aproveita dessa peculiaridade da natureza humana... Chegamos a um décimo de uma imagem, segundo as proporções enunciadas. Estamos pelas cem palavras...

Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras, mas lembro um dia... e lá vem história! Um dia, participava de um seminário com alunos de uma faculdade quando uma bela aluna me perguntou se eu achava, mesmo, que uma imagem valia as tais mil palavras do enunciado... Antes de responder, naquela fração de segundo onde o pensamento não é verbal, cogitei dizer: cala mulher e procura um espelho! O diabo da menina era bonita mesmo, mas eu não era um mestre zen e, se fosse, talvez tivesse apenas perguntado se é possível medir com grãos de trigo, por exemplo, o valor do suco de uma laranja. Valeria mil grãos? Nem laranjas nem espelho, comecei a tentar explicar que a "naturezas de conteúdo" da palavra e da imagem são difíceis de comparar e não tive a sabedoria nem a ousadia de descrever uma bela mulher e depois pedir uma foto dela, mesmo que fosse de carterinha de estudante...

Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras, mas seria fácil retrucar: depende da imagem. Muitas vezes paramos diante de uma velha imagem e o que ela deixa de nos informar supera em muito a informação que nos dá. Eis um exemplo qualquer, tirado velho álbum de retratos:

Se contemplarmos com calma as duas damas, em pouco tempo nos veremos com mais perguntas do que respostas. A fotografia nos traz informações abundantes e minuciosas sobre o jeito de vestir (pelo menos, para posar para uma fotografia), sobre as modas da época, etc. Tantas, que seriam difíceis de descrever e, por melhor que fosse a descrição, acabaria por criar tantas imagens diferentes quantos fossem os leitores.

Nesse aspecto a imagem vale por um milhão de palavras! Mesmo quando examinada em detalhe, e apesar de toda deterioração, nosso espanto permanece, diante da virtude maior da fotografia: essa identidade de aparência com a realidade, sua capacidade de reproduzir a realidade visual (e apenas esta) com tamanha perfeição, numa imagem que se oferece, desinibida, à nossa volúpia visual, mas onde, também, o próximo instante jamais acontece.

Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras, mas diante de uma imagem como esta, há uma sede de palavras difícil de aplacar. Quem são as damas? De onde vem esta foto? Qual a época retratada? Por que ela está sendo mostrada? A dama sentada parece um pouco tensa, a julgar pelo gesto das mãos, por que seria? E, por esses devaneios diante de uma imagem muda, chagaríamos ao mais intrigante de todos os elementos que uma fotografia pode conter: o rosto humano!

Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras, mas a expressividade do rosto humano pode tornar inútil qualquer palavra e transparente a idiotice dessa mania de querer tudo comparar! Quem já está se acostumando com meu jeito bagunçado pode perceber aqui, talvez, uma explicação: há muito me neguei o papel do "especialista", por explícita deliberação também, mas para atender a um impulso natural de ansiar por uma visão global - de tudo! Inveja divina, provavelmente, no entanto a visão fragmentada da vida e do mundo, me parece, só tem levado ao caos cada vez maior que constatamos na sociedade que fabricamos a cada dia. As coisas estão todas interligadas e são, em última análise, um reflexo dos seis bilhões que somos. Falava do poder de um rosto - um tema a que ainda quero voltar - e esbarro, depois de muito repetir, nessa mania de comparar, de estimular, sempre, a competição. Aqui, diria Dona Eufrásia, isso é um detalhe insignificante, sem nenhuma importância, mas aí é que está... As pequenas coisas, as insignificâncias do cotidiano é que, somadas, fazem o mundo do jeito que o mundo é.

Quando se diz que uma imagem vale mil palavras está se fazendo a mesma coisa que quando se diz para uma criança que seu irmão - ou irmã - é mais isso ou mais aquilo. Está-se fazendo uma comparação, está-se medindo e estimulando a competição, está-se construindo um mundo onde todos irão querer ser mais aquilo e mais aquilo outro... Em cada pequeno gesto, em cada atitude, por mais insignificante que pareça, somos mestres, somos os responsáveis pela educação nossa e dos outros bilhões que também somos e que, quase sempre, mal conseguimos "realize"... (ah! outra palavrinha tão difícil de substituir...)

Não sei quem disse que uma imagem vale mil palavras nem quero saber, mas volto para falar do poder de um rosto, sempre sujeito a essas intempéries, surpreendentes até para mim.



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