Colcha de retalhos


06/10/97

Um dia ainda consigo fazer uma grande colcha de retalhos, do jeito que somos, ou eu, pelo menos, sou. As primeiras trovoadas soam longe e penso: se vier uma tempestade, terei que passar para velas, papel e lápis... Queria conseguir largar ao acaso o amontoar e encaixar de pedaços desordenados. É assim que sinto, assim me vejo. Mas o vício solitário de enfileirar letrinhas está viciado também e, por hábito, procura ordenar, organizar, criticar, na ilusão de que, com isso, vai chegar a dizer o que sempre quer e nunca consegue. Hoje, ouvi ao telefone: - não encontro as palavras, não posso dizer o que queria. Sei o que quero dizer, mas procuro e não sei onde as palavras estão. Hoje, ouvi ao telefone risos descontrolados, por uma bobagem qualquer. E os risos contagiaram e me fizeram rir também. Hoje, ouvi ao telefone choro contido, quase só pressentido, lágrimas silenciosas que trouxeram vontade de igual chorar. As trovoadas estão mais próximas...

E você pensa e diz com os botões que são seus, embora eu não possa escutar: - esse cara passou o dia inteiro ao telefone. E depois de dizer ou pensar, não sabe se põe uma exclamação, se uma interrogação e decide: os dois, porque não? E, no entanto, o ler e responder ao correio eletrônico me ocupou muito mais. Fragmentos virtuais de sentimentos! Foi diante desses retalhos, que veio o ímpeto de alinhavar a colcha, num patchwork de emoções. Meu deus! Cada pequeno trecho se estende como bandeira e grita aos quatro ventos: vejam, sintam como vivi, como eu senti! - ou então: olhem, tentem rir mais do que eu ri! - e alguns, simplesmente calam, sem palavra alguma, e diante deles se quer baixar os olhos, para que nem eles, os olhos, não possam falar... Agora, uma imensa trovoada trovoa como se não fosse jamais acabar...

"Gozado, isso. Um dia, tua vida depende daquela pessoa. Noutro, ela vira um punhado de fotos, algumas recordações boas ou ruins e... só." Se fosse escrever a cada um, pedindo autorização para roubar esta e aquela frase, e inventasse toda burocracia para o altar dos direitos autorais... jamais poderia ensaiar o mosaico que sonho... Os primeiros pingos... e, no fundo, contínuos trovões. "E eh por aih o motivo desse recadoso amorinho:" sim, mas aqui o recado é que vim só para dizer e não digo que tudo está, e é, apenas dentro de nós... "... sabiam do perigo que corriam, mas para estar vivo basta correr perigo.(é assim o ditado?) Sim, impossível saber o que nos espreita na próxima esquina... " Ah, voce ouviu falar de um tal de virus da internet super perigosissimo?" Não. Acredito tanto em segurança contra os vírus byticos quanto na imortalidade que um seguro de vida dá. "Ouvindo um Frederico... o Chopin? ele eh mesmo o maximo. Eh o Jimi Hendrix do piano." Acredito, mas nasci surdo do cérebro. Os olhos comeram os ouvidos e as orelhas parecem de Satanás... "Não há mais muros entre nós!" Não, another brick in the wall... meros tijolos do muro que ruiu... Satanás riu. "...reli uma crônica como se fosse pela primeira vez e ri como se nunca a tivesse lido, o que só confirma que as coisas ditas uma vez só e só uma vez permanecem inéditas." Pois é...

Ontem mencionei uma carta nem sequer enviada, dessas que ficam na manga até o jogo acabar. Mas nos repetimos em voltas de bicho enjaulado, até nas imagens que voltam sempre as mesmas, como se fizéssemos a mesmíssima crônica, desde sempre, a despeito do sol, da chuva, da tempestade que se insinuou e sumiu, porque era para desabar alhures e, agora, nem trovoar mais, é capaz de trovoar. Xô, fora Satanás! Tomo emprestado o último parágrafo da carta que paira como mosca varejeira, para arrematar a colcha que não consegui:

"Armadilha da memória, escondida há alguns anos numa sala inóspita, burocrática, absurda; onde um simples assunto de trabalho virou pretexto, ou talvez não, e o calor e o frio insinuavam que palavras são apenas palavras, meras palavras e ficou claro que o Homem nada sabe, ou quase nada, sobre comunicação, apesar de tantas Faculdades, pilhas de teses acadêmicas, satélites, e tudo mais. Talvez ali, misteriosamente, sem porquê, sem razão, tenha entendido, por um momento, o que é comunhão ...e Diana sorriu de sua armadilha, e deixou à Vida, guiar as patas dos mortais."




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