Olha quem veio para ajudar

27/09/97


Essa crônica boba de cada dia é uma grande aventura. Em um mês, tornou-se uma aventura com sua dose de suspense e surpresa. Já que, sem esse toque de Hitchcock, nada é uma aventura de fato. Vou tentar explicar.

Transformei-me num cogumelo, num fungo, num desses vegetais que vivem grudados num substrato úmido e sombrio, imóvel como lagarto ao sol, só que não há sol e faz frio. O substrato é esta tela, com as janelas do senhor porteira, aberturas estreitas onde escrevo. Ora, apesar do cenário, disse que essa coisa insalubre, se transformou numa aventura e imagino que, a essa altura, você esteja se perguntando por quê.

Aqui sou gado, como os atores para o inglês, e quem dirige esse Hitchcock, com suas mãos infernais, não pode ser outro senão, em pessoa, o próprio Satanás. Refastela-se o diabo ali, naquela cama Patente e apenas me olha de esguelha, com seus olhos sorridentes. Começo, por começar, o primeiro passo da caminhada, mas já sabendo, no fundo, que desconheço a estrada. Diz-me o anjo rebelado: - que temos pra hoje aprendiz? E ri, um riso gelado, que insinua uma diretriz.

Chega, dona Sabrina, a senhora tem toda razão: a rima às vezes enche o saco! Mas é o diabo, Sabrina, era isso que queria contar. Não posso fazer nada, percebe? Ele vem, se instala e daí em diante começo a me surpreender mais que a senhora, mais que minha adorável favorita, a mais encantadora de toda a multidão de minhas leitoras. Nada pode ser feito. Ele se apossa de meus dedos, acaricia o teclado com tal suavidade, que acho uma bênção que nenhuma leitora mais sécia e frança (¹) me surpreenda assim, nessas intimidades... A senhora sabe, o diabo é o diabo! Se não sabe, pode perguntar pro Dr. Fausto, que o conhece muito bem.

Reclinado ali, começa a trazer personagens e insinuações. Confesso que me divirto com o espetáculo, Outro dia apareceu um primo de quem nunca ouvira falar. O antigo anjo do Senhor queria que ele desse uns palpites, também. Era o primo Nicolau, figura ambígua, soltando anéis de fumaça de um charuto vagabundo. Pareceu-me um finório e consegui deixá-lo de fora. Além disso, provoca, o manhoso. Vocês sabem, é o diabo. Volta e meia repete, como quem não quer nada: - por que não contas o primeiro beijo? E deixa iluminar seu sorriso, com todas as segundas intenções... Ou, então, se faz de sério e questiona: - afinal, o que queres tu com essa bobagem? E aí não sorri. E faz-se silêncio na trilha sonora, marcado pela pancada monótona do relógio de pêndulo.

O que sei é que não tenho o menor controle sobre o que vai se passar nesta página. Aparentemente, o assunto já existe, alheio a meu eventual querer e totalmente independente de minha opinião. Existe, mas eu não sei qual é. A grande aventura de fazer a crônica está exatamente na descoberta de seu tema. Uma aventura como a de Colombo, que quando menos esperava, esbarrou num continente. Tudo que posso é tatear, procurar, titubear e seguir. Aguçar o tato na ponta dos dedos para perceber os menores sinais - talvez por isso acaricie o teclado assim - e seguir. Seguir sem medo, porque há outra certeza também: Satanás ou os deuses não permitem que eu me engane. Não há nenhum esforço. Nem mesmo chega a ser uma decisão: olho e vejo com clareza: - não é nada disso. Descarto, e continuamos a tatear...

O demônio me oferece outro cigarro, aceito. Enquanto fumo ele cutuca: - rodas em círculos sobre as mesmas coisas, repetes as mesmas imagens, tens três ou quatro obsessões, nada mais. Sai, rompe a redoma em que te proteges, rasga a placenta que te envolve ainda. Dou outra tragada e vejo os sonhos se diluírem na fumaça do cigarro. Ele rasga mais o sorriso e continua: - há um mundo lá fora, sabias? Há outras pessoas, há outras cidades, há flores e, para cada Fausto, uma margarida. O que vale uma alma? E no delírio arranco uma pétala, e depois outra, se quer não quer. O cigarro acaba. Esvazio o cinzeiro de todas as guimbas. Olho - o espectro se foi.

O aprendiz de feiticeiro é capaz de jamais aprender. Incapaz, por outro lado, de perder uma aventura dessas.



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