autor durante aula na Editora Abril [1968] crônica do dia - gemido esporádico, sobra do que um dia se imaginou berro

Sônia

16/04/07

Resgato trapos de memória, sombras (sobras?) incompletas. mas que por enquanto me bastam para trazer de volta a Maria Pintada ou, se não era Maria seria outra Pintada qualquer - talvez fosse mesmo dona Maria Pintada, uma mulata escura, que morava do outro lado da rua e, sempre que passava, ouvia a molecada zombar com o apelido perverso. Era malhada, ou pintada, por causa de vitiligo ou leucodermia - doenças que a provocam perda localizada da pigmentação da pele -, mas só soube disto muito depois.

Sem televisão, sem computador nem aparelhinhos mirabolantes, brincávamos na rua. Éramos impiedosos, mas espontâneos. Reagíamos ao aspecto que nos dava medo com risinhos nervosos. Se éramos os caçadores ela era monstro e caça.

Como ainda não existia a locução, ninguém sabia o que era, ou não, politicamente correto. Mas sempre existiu escárnio e gente a troçar de defeito ou incapacidade alheia.

cenas de 'iutuíu', captura de tela
cenas de 'iutubíu', com Sônia

Agora tudo começou diante de um vídeozinho que me chegou por e-mail, mas antes de continuar, um aviso importante: caso queira ver o vídeo antes de ler o resto, ele está em:

www.youtube.com/watch?v=gUnGhBOT4JY

Suponho que o mandaram à guisa de diversão, mas Sônia, a personagem do vídeo, me tocou. Não me fez rir, mas refletir. Sua dignidade me emocionou. A televisão está cheia de mulheres falando diretamente para a câmera, como Sônia mas, observe, nenhuma tem, como ela, zero de afetação.

Fica claro que Sônia é uma pessoa sem muito dinheiro - não usarei os eufemismos costumeiros - e de pouca instrução formal, mas também é óbvio que é alguém com inteligência acima da média. Ela é franca, verdadeira, autêntica mas, sobretudo, com muita dignidade.

Como milhões de pessoas, Sônia é tal qual é, não faz pose, não quer parecer. Se tem algum 'ídolo', não sonha a ele se igualar. Vale pelo que é - uma grande mulher. Palavra de misógino.

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