Tia Sophia


14/11/97


A boa velha chegou transbordando vitalidade e, apesar da idade provecta, parecia uma criança perto de mim. Tia Sophia chegou ágil, com suas malinhas, a bolsa à tiracolo e, de quebra um pacote no sovaco. Afastou com um gesto a ajuda que mencionei com outro e fechou a porta da cozinha atrás de si, pois fazia questão de entrar pelos fundos, com um movimento insuspeitável dos quadris. Estava mais lépida que muito atacante, que perde gol feito dentro da pequena área por pura preguiça de esticar o pé. Arriou suas tralhas num canto, pôs por cima de tudo o pacote, depois de o alisar como quem quer recompor as marcas inevitáveis do modo esdrúxulo de o transportar, olhou tudo ao redor, suspirou e, enfim, sentou. Pouco depois, levantava para me abraçar. Bem vinda a esta eremitério, Tia Sabedoria - saudei, como sempre a costumava saudar.

Ninguém sabia a idade de Tia Sophia. Era seu único e ferrenho segredo. Alguns maldavam que perambulava há séculos pelo Planeta, olvidada pela Morte. Conversa, apesar de que, quando cheguei por aqui, a boa velhinha já andava por aí, com a mesma disposição e a mesma cara que tem hoje... Quer um café, quer? - perguntei, e ela olhou com um olhar que diz: você bem sabe que não tomo café. Eu sabia, por isso mesmo que ofereci... Fui pegar Capim Santo para fazer chá...

Lá pelas tantas a tia anunciou: trouxe uma coisa pra você, um presente. Fiquei sabendo dessa sua mania... - continuou - deu pra escrever crônica agora, é? E escreve coisa que preste? Bom, conhecendo um pouco você, já imagino que não perde tempo com esses safados... não é crônica sobre política não, é? Assim era Tia Sophia: fala mansa, pausada mas, falava como uma mulher! Por conhecer o sobrinho, nem esperava resposta minha. Criava interessantíssimos monólogos, entre os goles de chá. Depois, foi pegar o tal pacote. Era o presente: espero que sirva pras suas crônicas - foi o que disse.

Abri o embrulho com vagar, procurando tirar cada durex sem rasgar o papel, enquanto me perguntava se a sofreguidão em dilacerar embalagens está ligada ao sexo ou à idade... quiçá, a nenhum dos dois... conheço um menino que não abre os pacotes, os violenta; por outro lado, lembro de uma menina que tem a maior paciência para abrir embalagens que jamais vi... os velhos, que agora se chamam idosos, abrem no estilo da menina... enfim, consegui chegar ao conteúdo do presente. Uma pasta vermelha, meio maltratada, sem qualquer coisa escrita pro fora, fechada por dois elásticos riscadinhos de branco e preto. Olhei pra Tia Sophia e para a pasta...

Ela foi logo explicando: olha, não sei se pode ser de alguma serventia... Eram recortes de jornais, revistas e outros impressos que, há alguns anos, a tia colecionava. Meu olhos brilharam. Dei um beijo estalado em cada bochecha dela. Agora, tia, vou fazer um café pra examinar esse tesouro. Quer mais uma chá, quer? Ela aceitou e começou a dizer para não me animar, que ela nem sabia mais o que havia ali, que tinha catado ao longo de tantos anos, movida por razões tão diversas... que, talvez, não tivesse mesmo nada que se pudesse aproveitar... mas, que quando soube dessa loucura das crônicas diárias - e aí, fez uma pergunta terrível mas, logo passou adiante, como de hábito: são diárias, não são? Todos os dias? Nunca falha?... - resolvi trazer... quem sabe no meio dessa velharia se garimpa alguma coisa... afinal a diferença de idade é grande, mas em tantas coisas somos tão parecidos... Falava!

A primeira coisa que vinha à cabeça, quando se começava o folhear os recortes era: Tia Sophia é, definitivamente, eclética! Havia de tudo, de tudo mesmo. Alguns estavam sublinhados, com indicações dos aspectos que levaram a boa velha a guardá-los tanto tempo. Outros pareciam atuais. Tia, veja só este, poderia sair no jornal de amanhã: "a economia do mundo encontra-se precariamente baseada na especulação e na avareza e, por isso, pode ruir a qualquer momento." Lembra dessa, tia - falei com o recorte na mão. Ela não lembrava, é claro. Insisti: adivinha quem disse isso, a frase é mais impressionante quando se sabe o nome do santo... Ela não lembrava, é claro. Olha, está escrito aqui: saiu na folha de 28 de fevereiro de 1993, há quase cinco anos! E sabe da boca de quem, sabe? Está aqui: Antonio Ermírio de Moraes.

Tia Sophia, esta pasta é um achado! Nossa, tem de tudo aqui. Danusa Leão, também? E no reveillon, hem?... Poesia, filosofia, sexo... tem de tudo... mas, pera aí!... Esporte também? Essa não! E ainda por cima basquete? Isso eu não esperava... Mas nem foi preciso pedir explicação, pois tudo se tornava óbvio ao mesmo tempo que Tia Sophia explicava. Não era sobre esportes aquela escolha, era sobre o bicho visual. Por isso estava guardada, inteira, a página 13 do caderno esportivo da Folha, de 11 de junho de 1996. Nela, uma grande matéria sobre o campeonato de basquete lá dos norte-americanos. Uma única foto ilustrava a matéria. A legenda da foto começa assim: "A supermodelo Cindy Crawford assiste a Chicago x Seatle, no domingo..."



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