Telefonema

 

Você, eu, o seu vizinho, o meu, as pessoas que trabalham com você, seu amigo, sua amiga, as outras, que trabalham comigo e, depois, todos os outros vizinhos dessas pessoas e mais os colegas, parentes e amigos que, de novo vão ter vizinhos, companheiros de trabalho etc. - nós todos acabamos sendo um bocado de gente! No mundo todo, calculam que dá uns seis bilhões.

Aqui, nesse canto ao sul do equador, entre o Atlântico e o Pacífico, onde se fala essa nossa língua moribunda, orçam em 160 milhões, mas que não se pretenda qualquer precisão aí: minha casa, por exemplo, existe autônoma desde 1966 e jamais a campainha da porta foi acionada por um recenseador. Seus moradores - um número que variou em 600% nesse período - ou nunca existiram nas contas oficiais ou foram incluídos segundo imponderáveis "estimativas" de algum estagiário mais preguiçoso e apressado. De qualquer forma, esse monte de gente que somos é importante para muitas ações dos que pretendem mover ou, de fato, comandam os cordéis. Dependendo do momento e de interesses vários, nos chamam de povo, povão, massa, galera, torcida, manifestantes, subversivos, pacientes, clientes, consumidores etc.

Não importa, o adjetivo ou metáfora, o fato é que precisam de nós. E aí reside a força, que quase nunca sabemos aproveitar. O exemplo mais contundente dessa força está nas corridas aos bancos. Nada torna economistas e governantes mais pálidos e trêmulos do que a idéia de que todo bom cidadão irá em paz e ordeiramente até ao seu banqueiro pedir apenas o próprio dinheiro. Dinheirinho que é dele, cordeiro do rebanho de seis bilhões de cabeças, e que ele aceitou deixar "guardado" com algum conhecido salafrário, apenas pelo prestígio que a sociedade atribuiu e atribui aos donos de banco.

Antigamente, os donos de banco pagavam um pouquinho para convencer as ovelhas a entregarem suas moedas. Hoje, aqui, a maioria não só entrega como até paga ao lobo. As campanhas sobre segurança e falta de segurança funcionaram. Entrega, apesar de saber que esse dinheiro não fica guardado coisíssima nenhuma: evapora nas safadezas que, de tempos em tempos, se tornam tão escandalosas que chegam a aparecer nos céus, como os cometas. O dinheiro simplesmente não existe - isto está confirmado nas primeiras páginas de qualquer livro de economia. Por isso, a corrida aos bancos surge como a maior de todas as assombrações.

Nós, cordeiros cordatos e ordeiros, poderíamos balir em outras situações, diante de humilhações menores e usar essa força: se vendem, é preciso que alguém compre; se anunciam, é preciso que alguém veja; se "captam" - ah, eufemismos! - é preciso que alguém empreste e por aí vai.

Liga a moça do telemarketing. Começa a fazer perguntas. Supõe que vá fornecer dados assim, sem mais nem menos. Ora, só digo o número chamado, e nada mais. Ela se sente um pouco desnorteada. Inverto o jogo e passo a fazer perguntas em vez de responder às dela. Ela fica mais perdida. Quer vender assinatura de jornal pelo telefone. Pergunto o que a empresa para a qual ela trabalha vende. A pergunta a confunde. Continuo, querendo saber se a tal empresa também dá informação. Além de vender, dá - dá, sem nada cobrar. Em seguida, pergunto se a empresa - tenho sempre cuidado ao tratar a funcionária e a empresa como coisas separadas e independentes - se a empresa para a qual está trabalhando vai me pagar pelas informações que ela me pede. Ela bate o telefone na minha cara...

É urgente descobrir modos diferentes de relacionamento. Sei que contribuo com ações e interações para esse modelo de sociedade que critico aqui. Mas é importante que cada um esteja consciente e procure questionar o comportamento padronizado, a reação habitual, automática, quase sempre condicionada segundo os interesses dos poderosos, dos ricos, dos que não ficaram passivamente apenas criticando tudo e todos... É urgente começar a desenhar uma nova sociedade.

 

Publicada em 22 de abril de 1999

 

 

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