Tempestade


02/10/97


Venta. Não é um vendaval, é claro, mas venta muito e quase sem parar. Vem mais do oeste, um pouco do norte e muitas nuvens vêm e passam e apagam e acendem o Sol. A paisagem vira cenário de um teatro louco onde o iluminador brinca, irresponsável, com chaves e botões. A trilha é formidável, o ruflar das folhas, lá fora e nas frestas das casas, tentativas de assobiar... O azul pálido do ensaio de primavera evoca esses quadros vendidos nas feiras, por artistas que passam pela vida sem jamais conhecer a fama e a afetação das galerias de arte, desse mundo de marchands e dondocas e - gostaria muito de poder dizer -, dondocos também...

A fúria da Natureza é bela. E necessária. Outro dia, tivemos a primeira "chuva de verão". Tempestade cheia de raios, relâmpagos, trovões e trovoadas, em plena manhã. O dia, que engatinhava, anoiteceu bruscamente e despencaram baldes de água dos céus. Em poucos minutos, a água já formava copiosos córregos, que varriam o chão. Passou. O Sol encontrou uma natureza encharcada e perfumada de terra, que só assim se percebe, o cheiro de nossa Mãe. E virão outros temporais, nesses dias cada vez mais longos, uma espécie de adolescência de cada ano. Carregada da mesma impressão que temos, jovens, de que será eternamente assim - com dias cada vez maiores, nesses "meses dourados", em companhia do pai Sol. E, no ponto extremo, na noite menorzinha que haverá, sequer lembramos que no vértice da órbita, daquele ponto em diante, os dias passarão a diminuir. E teremos dias menores, a cada dia, rumo às chuvas que fecham o verão...

A fúria da Natureza é bela, a dos homens, não. Ouço no rádio que algumas pessoas vão entregar espontaneamente as armas que têm em casa. Diante da pergunta do repórter, uma delas explica seus motivos: "agora, que meus filhos estão crescendo, caí em mim que é um perigo ter arma em casa." O repórter pergunta se alguma vez - nos cinco anos que a possuiu - ele pensou em usar a arma. E o outro diz: - "Uma vez. Por causa de uma briga de trânsito. Entrei em casa, peguei a arma e ia sair atrás, para..." - aí, gagueja, procura a palavra, se emociona, toma fôlego e conclui: "fazer uma besteira."

Em nós, a tempestade, antes de tudo, cega. As grandes descargas de hormônios nos tornam, é óbvio, mais que nunca, apenas o animal. E justamente por não sermos apenas o animal, é preciso compreender esses temporais quando o domínio de tais hormônios e de todas suas conseqüências metabólicas e psicológicas, não nos estão a cegar. Se percebemos com clareza, uma única vez que seja, o absurdo de agir com toda a fúria que esse mecanismos biológicos podem desencadear, há alguma chance de, perceber, na hora do vendaval, que o animal em nós assume o comando. Aí, seria prudente, tirar de seu alcance, qualquer instrumento que ele possa usar. Não falo, é claro, apenas de instrumentos materiais, capazes de estender e potencializar a ação de nossos músculos. Penso, principalmente, nos instrumentos capazes de estender e ampliar a ação de nossos neurônios, ou seja, justamente naquilo que não é o animal em nós. O mais difícil, talvez, seja, nessas horas, calar.

O vento traz muitas nuvens. Como se o iluminador de nosso cenário lutasse contra um sono imenso, agora só de raro em raro, as folhas brilham com uma nesga tímida de sol. Quase transformava essa conversa nossa de cada dia num vaso imundo com o vômito de imprecações e ódio, e confirmava, assim, o quanto é difícil calar se os hormônios (espero que sejam mesmo hormônios, não sou médico, apenas gosto da palavra e de sua rima implícita com neurônios) transbordaram e saem por poros, urina e lágrimas, por todo lugar. Estava quase consumada a estupidez, quando o telefone toca e uma hora e pouco de conversa foi o tempo necessário para todo o excesso ser, de fato, e não como retórica, metabolizado e excretado. Voltei e toda a fúria do texto me pareceu absurda, inútil e - é este o adjetivo que o diz: babaca. Senti falta do gesto material, de poder arrancar a folha, amassá-la ou picá-la e a jogar numa cesta não virtual...

O dia já ameaçava amanhecer, nessa adolescência do ciclo, com dias mais e mais compridos, que nos trazem a ilusão de que, agora, será assim para sempre e os dias continuarão a crescer, ficar mais e mais longos, e o verão virá e se sentará ao nosso lado e viveremos felizes para sempre...



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