Aprendiz

01/10/97


Você pode, deve e, provavelmente já se perguntou: como pode um cogumelo ermitão escrever crônicas? Cronista de quê? Confesso que é um alívio que ainda não tenha feito, a mim, esta pergunta. Basta a angústia que sinto ao fazê-la eu próprio. Cronista fala do cotidiano, das pessoas com quem esbarra nas filas da vida, dos bêbados que escuta nos botequins, e das mulheres que sonha, por pudor de falar das reais. No entanto, apesar de me perguntar, assim como você: - como pode? - apesar de passar dois, três, dez dias sem sair de casa, se há estoque suficiente de cigarros, apesar de, às vezes, passar o dia todo sem ouvir o som de minha voz, na hora da crônica, me vejo com várias coisas que queria contar. Aí esbarro na dificuldade inata para escolher...

A escolha, qualquer escolha, me parece sempre absurda. Claro, se tivesse que escolher entre apanhar ou deixar de apanhar... mas não se trata disso, é evidente. Digamos, para exemplificar, escolher um prato diante de um cardápio; escolher um destino, se se vai viajar, etc., para não falar de outras escolhas, piores... Você leitor recente, talvez não saiba: quase sempre deixo a tarefa ingrata aos deuses e vou, de surpresa em surpresa descobrindo a crônica que se faz por mim. Tudo isso me parece justo, apropriado, no lugar certo (algumas coisas deveriam ser sumariamente importadas de outra língua, quando a nossa é impotente para as substituir: no lugar certo jamais dirá o mesmo que bien placé, assim como jamais encontrei um verdadeiro substituto para anyway.) O poeta de gabinete, esquálido branco e predestinado a morrer de tuberculose, virou coisa do passado. Sua poesia tão virtual quanto sua experiência do mundo, não poderia encontrar melhor nicho para se ocultar do que essas cem milhões de páginas perdidas nos sei lá quantos milhões de computadores, interligados por linhas telefônicas assim e assado, etc. Bien placé.

Chega uma carta eletrônica. Traz um poema e três surpresas. A primeira: a descoberta de um poeta, num amigo. Segunda: o poema é maravilhoso e, portanto, o pê do Poeta deve ser maiúsculo. Terceira: descobrir um belo poema é capaz de resgatar coisas adormecidas em nós. Digo coisas por não saber, ao certo se deveria dizer estados, emoções ou estados de sensibilidade ou a palavra que ignoro, para resumir tudo isso. Os cépticos dirão: - bah! Poesia, um saco! Sim, a poesia é difícil, precisa de ar, para respirar. (Isto é plágio!).

Ora, só essa cartinha já me deixaria falar muitas páginas, pois o poema trata, no fundo, dos mesmíssimos assuntos que se repetem aqui (no final das contas, falamos sempre da vida e do ser humano, seja lá com que disfarce for, e tentamos, ao mesmo tempo, conseguir falar dos deuses mas, quase sempre, os transformamos em meros mortais...) Vieram outras cartas, cada uma com sua graça e emoção. O amigo de longa data diz: - "É viagem atrás de viagem." E a mensagem acaba duas ou três linhas depois...

Pego um livro que nunca li. Leio muito, mas poucos livros. Na verdade, releio mais do que leio. Pois bem: peguei um livro, de capa feia, que rola há anos por aí. Talvez tenha sido de meu pai, talnunvez. É uma edição de 1972, quando ainda se costuravam os livros e usava-se um corpo possível de ler. As maravilhas da computação não tinham feito seu estrago nas editoras - resumindo: um livro gostoso de ler. Sei que você está doido para que diga logo o autor e o título, mas proponho que tenha um pouco de paciência, pois logo nas primeiras páginas da sátira, o autor a explica. É o diálogo de duas personagens. O primeiro pergunta pelo livro que o outro começou a escrever:

"- Demasiado erudito?

- Aborrecido.

- Então, para que o vai escrever?

- Se eu não o escrever, quem o fará?"

Algumas linhas depois a personagem autor conta como é o livro:

"- Pântanos é, especialmente, a história de quem não pode viajar; - em Virgílio esse homem se chama Títiro. - Pântanos é a história de um homem que, possuindo o campo de Títiro, não faz o menor esforço para sair dele; ao contrário, contenta-se perfeitamente com a sua sorte..."

Pântanos (Paludes) é de André Gide, um de seus primeiros livros, de 1920 Algumas páginas adiante, a personagem que escreve Pântanos, continua tentando explicar: "...Títiro não está descontente com a sua vida; tem um certo prazer em contemplar os pântanos; qualquer mudança de tempo faz a paisagem mudar."

Meu amigo concluiu assim, sua curta mensagem: - "A kombi buzinou lá fora. Tô indo."

Por que escrevo essas crônicas?

- Se eu não as escrever, quem o fará?"

 


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