Umbigo

 

As poucas pessoas que passeiam por estas páginas sabem que escutam a voz de um velho. Para muita gente, envelhecer é encarado como um castigo que não se pode evitar - e o encarar a morte fica adiado por meio de sutis artifícios. Millôr diz: "a morte é hereditária". Discordo dele. Se fosse como uma doença ou marca, que passa de geração em geração, como a cor da pele ou a hemofilia, por exemplo, falharia de vez em quando, mesmo que muito esporadicamente. Os intrincados códigos do DNA são falíveis, como nós. A morte não falha, jamais. Mas envelhecer, além de natural e inevitável, traz um monte de coisas boas, que o excesso de juventude veta.

Para começar, deixo a Buñuel o primeiro exemplo: "Até a idade de setenta e cinco anos, não detestei a velhice. Encontrava nela inclusive um certo contentamento, uma tranqüilidade nova e apreciava, como um alívio, o desaparecimento do desejo sexual e de todos os outros desejos." (O desejo é, sem dúvida, um tirano, mas seria ingênuo pretender que um ou uma jovem o sintam como tal. Se fossem capazes de percebê-lo, a tirania estaria ameaçada.) Em outros aspectos, há privilégios que só os velhos podem ter. Um ponto de vista mais alto, com horizontes mais amplos, é o que mais me chama atenção. Muitos outros aspectos são decorrência dessa perspectiva privilegiada.

É possível ter um pedaço de História vivida, um pouquinho maior do que se tem na juventude. Isso muda o peso que cada bobagem assume, mas pode mudar, também e perigosamente, o significado de novo. A sensação de que um mundo diferente está surgindo, de que é possível estabelecer uma sociedade com outras bases, tudo com o tempero do sonho arquetípico do paraíso perdido, tudo isso fica ameaçado pela nova perspectiva. É preciso estar atento, é preciso deixar abertas portas e janelas para que os ventos, bons e ruins, possam circular.

Ao cogitar tais coisas, dá-me alento, apenas, constatar a surpresa cotidiana que, para mim, se escondem nessas linhas. Quase sempre começo uma idéia boba, que me encantou por qualquer razão e as primeiras associações logo me distraem e mudam o rumo do que se pretendia dizer. Isso é prova de quanto o pensamento se assemelha ao computador - os mais jovens, certamente nem imaginam que, no início, as gigantescas máquinas (com capacidade minúscula, é óbvio) eram chamadas de cérebros eletrônicos. Vou tentar citar o exemplo de hoje, apenas.

Comecei pela idade, para poder citar um ditado popular já velho demais e que, por isso, se tornou ridículo. Mas achava que a graça estava aí, no anacronismo. Diria que, se não me engano introduzido por um humorista (seria o Zé Trindade?) houve época em que era comum dizer-se de uma pessoa que não estava "por dentro" das coisas, que estava "mais por fora que umbigo de vedete". Seria apenas um pretexto - ou gancho, como dizem os jornalistas - para justificar um papo centrado no próprio umbigo, pois a intenção mesmo era conversar um pouco sobre estas páginas e perguntar trivialidades, como o tipo de letra que a leitora (já disse que não acredito na existência de leitores do sexo masculino) prefere, o tamanho da letra, coisas assim.

Se sobrasse espaço, perguntaria se gostaria de ver por essas plagas algumas páginas que hospedo alhures e que, com uma pequena reforma, poderiam ser copiadas aqui. Uma velha coleção de frases, por exemplo, ou uma lista de palavras que não encontrei nos dicionários e, no entanto, estamos todos cansados de usar. Perguntaria, ainda, sobre o tamanho das crônicas. Preferiria menores? Elas têm entre 3.500 e 4.000 caracteres cada uma. Ontem medi a que sai da pena - veja só! Da pena, deve ser de um belo cisne negro, a suposta pena - da pena, dizia, de um cronista carioca e na segunda página de um jornal de grande circulação. Tinha menos de 1.800 caracteres... Por tudo isso, o papo ia ser ao redor do umbigo mas, como se vê, chegamos aos 3.891 caracteres, fora o título.

 

Publicada em 09 de março de 1999

 

 

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