'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Vã anamnese

24/07/17

A memória segue como desafio a essa mania tão humana de querer tudo compreender. Uma cena banal e sem importância de repente volta à lembrança, passado meio século e, com ela, vem a primeira interrogação: o que a trouxe assim, sem qualquer provocação? Tentemos recriar o bucólico panorama daquele domingo, dia dez de julho de 1977.

O dia da semana não veio da memória e, sim, de um calendário vulgar. Fazia frio e tudo era novidade. Acabávamos de dormir a primeira noite na nova casa, faltando ainda arremates e complementações. Tudo isto é accessório nas lembranças, informações complementares, escapismo à cena original, mas assim a memória processa nossas lembranças, preenchendo lacunas com um pouco de bom senso e muita imaginação.

A energia elétrica só seria ligada um mês depois e o amanhecer coincide com a temperatura mínima, em geral. A noite absolutamente silenciosa... minto, houve pios de corujas e um misterioso som de trem, muito distante. O madeiramento novo do telhado também deu os seus gemidos. A casa mais próxima estaria a uns 400 metros.

De pé - todos tinham dormido muito cedo como consequência da falta de eletricidade - começamos a abrir janelas e portas, curiosos com o entorno e a paisagem inédita àquela hora matinal e foi ao abrir a porta principal da casa, para uma pequena varanda, que nos deparamos com a tal cena, origem deste relato. Na verdade, a lembrança é muito imprecisa, reduzida bem mais a uma informação, um conteúdo verbal, que a imagem preciosa e bucólica.

Ao abrimos a porta vimos com espanto, deitada bem ali, uma vaca. Vi também o frio e disse vi para o separar de qualquer sensação de frio, mas não lembro mais como ele se mostrava ali. Não tinha geada. Talvez muito orvalho... talvez a evaporação...

A porta aberta em 10 de julho de 1977
A porta aberta em 10 de julho de 1977

Sei restar-me a imagem de uma vaca adormecida em um cenário frio. Pareceu um bom começo...

Tue, 25 Jul 2017 11:06:30 -0300

Oi, Clôde
Adorei a foto - bucólica como o texto ( e também evocou reminiscências...).

A data da mudança é (mais uma) coincidência nas nossas lembranças:
mudamos para a Granja em final de julho de 1977.
Eu estava voltando com Daniel e David da Bahia , onde tinha trabalhado
desde ano anterior. Acho que já tínhamos luz, água de poço, e muitas árvores
plantadas, ainda novinhas; de resto, o jardim era um mato raso, com o brejo (que depois virou lago)
no fundo do terreno. Mas os banheiros e a cozinha não estavam equipados: nos primeiros meses,
comíamos na casinha de caseiro, onde dormia a Luiza, uma velhinha que me acompanhou a
Salvador - e onde a encontramos morta (enfarto) poucos meses depois, ao descermos pra jantar.
Como não tínhamos telefone, Fernando saíu à noite pra pedir ajuda a um vizinho, de onde
telefonou pra meu cunhado pedindo que viesse buscar as crianças, e para tentar localizar a família de Luiza
e um médico para fazer o óbito. Não foi possível, e foi preciso chamar a polícia, que a levou para
fazer autópsia - o que nos custou ressentimentos eternos por parte da família dela.

Foi mais tarde, acho que uns quatro anos depois (eu já estava esperando o Denis), que Anucha
apareceu um dia lá em casa em um fusquinha e com uma cachorra a bordo, pra perguntar
se eu topava fazer fotos para um livro que ela estava ilustrando (não lembro o nome do autor -
era um médico, e o livro era tipo manual de orientação para mães/ pais; acabei dando para
minha nora quando Luan nasceu). Ela tinha sido sabido que eu estava grávida pelos seus meninos,
que volta e meia pegavam carona comigo pra voltar da escola da Granja. Ainda tenho aqui na parede
uma dessas fotos, que virou um pequeno pôster. E as fotos que ela tirou de Denis recém-nascido foram
usadas muitas vezes em minhas aulas e apresentações em congressos; Uma delas, que mostra o “sorriso não eliciado”, uma expressão facial que causou muita controvérsia entre pesquisadores da área
(os pediatras e os behavioristas afirmavam que era provocado por gases, e os etólogos e pesquisadores de comunicação não-verbal sustentavam que era uma expressão de conforto com função adaptativa na comunicação com os cuidadores) encantou o prof Paul Eckman (um dos pesquisadores mais reconhecidos nessa área), que estava dando um curso na USP: quando lhe mostrei, ele disse que nunca tinha visto uma foto tão boa desse fenômeno... Não me lembro se cheguei a contar isso para Anucha.

Mas lembro que, além da coincidência de 1977 , com o tempo apareceram mais algumas: o nome Ana Maria; também só tivemos filhos homens; Fernando foi aluno de vocês na Enfoco; e, salvo engano, Anucha é aquariana como eu (26 de janeiro de 45), e você é pisciano como Fernando, não é? Ele é de 28 de fevereiro de 44.

Junto algumas fotos - duas delas foram escaneadas, e saíram piores do que os
originais, mas também são reminiscências...

Bjs
Ana

P.S. A foto Ana, David (e Denis) foi o motivo original do contato: Anucha precisava fotografar uma mãe grávida com um filho mais velho que ia deixar de ser o caçula - um dos temas de que o livro tratava quando falava de gravidez.

P.S. 2: a denominação “sorriso não eliciado” é pelo seguinte: os primeiros sorrisos sociais do bebê são provocados pela voz e/ou pelo rosto da mãe; no sorriso não eliciado, a mãe não está falando, e o bebê está de olhos fechados - então não é um sorriso social: é uma expressão de conforto/ relaxamento, e acontece tipicamente depois de uma mamada, alternada com outras expressões, como altear as sobrancelhas e fazer biquinho; e as mães interpretam como um sorriso que diz: estou feliz...

Oi, Ana.

Lembro-me bem de muitas coisas aqui descritas. De outras, nunca soube, como a história da Luiza, por exemplo. As fotografias feitas por Anucha e o livro com você e o bebê são bem vivos em minha memória e, é óbvio, também desconhecia o "sorriso não eliciado" e as teorias por ele motivadas. Obrigado por seu relato.


Wed, 26 Jul 2017 15:14:51 -0700 (PDT)

nossa, q barato essa lembranca!
uma vaca, assim, logo no primeiro amanhecer
nao sabia q a eletricidade so tinha sido ligada um mes dps ... julho de 1977 ... Bruno tinha um ano e meio, entao o Vi tinha 7 o Rafa 9 (?)
mts bjs

      sem assinatura

Sim...

O Rafael completaria dez anos dali a alguns dias...

Ficamos um tempo sem luz, depois puxamos uns fios de uma casa vazia a uns cem metros...

Pagamos (indevidamente) os postes, o transformador e os fios para ter eletricidade.


Sun, 6 Aug 2017 13:03:23 -0300

Adorei a história da Sra. Vaca imprevista...
Pena que aconteceu uma única vez, né?
Gosto demais desses totais imprevistos.
A surpresa de verdade sempre me encanta, mesmo quando é do contra.
Tomara que se repita várias e várias vezes. De preferência com a presença de uma vaca bem gorda, né?

Beijo estilo muuuuummmm....


beijo

faz frio de novo por aqui...

      sem assinatura

Sim, aconteceu apenas na primeira manhã...
Sim, tais imprevistos no põem frente a frente com o novo.
Aqui em Copacabana uma vaca bem gorda seria mesmo a surpresa maior...

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