Velhas Cenas, Novo Cenário

 

Precisava telefonar. Indicaram-me a casa da telefonista, que era também costureira, ou vice-versa. Era uma construção típica do começo do século, com alguns degraus levando a uma espécie de varanda comprida, para onde se abriam as portas-balcão de todos os cômodos. Na primeira sala, além de uma máquina de costura "Singer", havia um aparelho telefônico pendurado na parede. Aquilo, aquela máquina preta era a central telefônica de Itatiaia, município a cerca de 200 km da capital!

Esperei um pouco e a costureira-telefonista apareceu. Pedi a ligação para o Rio, ainda a capital "de fato". Ela tirou do gancho a peça que se põe na orelha para escutar e aproximou a boca de outra, em forma de funil, para se falar e girou uma manivela, na lateral da aparelho. Depois de manivelar mais algumas vezes, conseguiu falar com outra telefonista, provavelmente de um "posto" melhor aparelhado, talvez um daqueles cheios de pinos e furos, onde heroínas - depois substituídas por computadores - comandavam a macarronada de fios, na difícil tarefa de ligar cada um com a exata pessoa desejada, o que exigia enfiar o pino certo no buraco certo...

Depois de um curto diálogo ela me informou: há uma espera de cerca de cinco horas para completar a ligação... Desisti. Precisava subir, à pé, rumo ao Parque das Agulhas Negras enquanto ainda era dia.

Era o ano de 1961. Alguns gostavam de dizer, até por graça, ano da graça de 1961, assinalando assim o início da contagem no nascimento de Jesus. Comparado aos anos que logo viriam, dir-se-ia mesmo cheio de graça aquele, como essa mesóclise esdrúxula, que já não se usa mais...

Saudosismo? Creio que não mas me pergunto: seria possível ter um automóvel, um celular, um computador e outros mimos da moderna tecnologia para cada um, seis bilhões de carros, de celulares, dos malditos programas do senhor janelas e, ao mesmo tempo, a vida pacata das ruas com bondes puxados por burros?

Meu avô morou em Nova Friburgo, nas serras do estado do Rio. Ia de bonde para o consultório. Quando não estava na calçada, na porta de casa, como de hábito, o condutor (seria assim chamado?) puxava a rédeas do burrico e todos os passageiros esperavam que ele descesse do bonde, tocasse a campainha e fosse atendido para perguntar: "Seu" Adelino não vai hoje? sobre a rua onde morava

É preciso, ainda, uma explicaçãoo "seu" Adelino: era a principal avenida da cidade e explico ainda que os trilhos usados pelo bonde, eram os mesmos por onde passava o trem, no percurso entra a estação Leopoldina, no Rio e rincões das Minas Gerais que nem desconfio... Viajei várias vezes nesse trem - uma velha, boa e bufante Maria-Fumaça! Mas era um trem tão esporádico que o tal burro podia puxar tranqüilo seu bonde.

Não conheci o avô Adelino, ele morreu antes. Isso deixa uma sensação de que a história do bondinho é coisa de um antigamente muito distante. Mas são fatos dos anos vinte, creio que do final daquela década. A grande revolução deste século foi no campo da ciência e da tecnologia. As mudanças de comportamento, as doenças que desapareceram e as outras que surgiram, o declínio da "nação" e a crescente importância da corporação, os métodos de massificação com sabor de individuação, tudo mais, enfim, deriva da brutal mudança trazida pelos cientistas e aplicado ao nosso cotidiano com o nome de tecnologia.

Aparentemente, o ser humano pouco ou nada mudou. Adaptou-se às novas tecnologias, mas traz virgem o mesmo animal que habita nossas entranhas desde sempre. Continuamos a invejar nosso irmão como Caim, a desejar a mulher do amigo como Davi, a cobiçar fama e fortuna como Alexandre, César, Hitler, etc.

Os computadores, que farão cada vez mais as tarefas idiotas que nos consomem, as viagens pelo espaço e as nuvens de satélites que enxameiam ao redor do planeta, as curas que a medicina dominará, os automóveis não poluentes e maravilhosos do futuro, tudo isso apenas arranha a casquinha... As grandes profundezas continuam intocadas. 

 

Publicada sexta-feira, 04 de setembro de 1998

 

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