Velhos Hábitos

 

Nas entranhas do computador encontro velhas anotações. Alguns sonhos, sonhos mesmo, ao pé da letra, em seu sentido primeiro - seqüência de fenômenos psíquicos (imagens, representações, atos, idéias, etc.) que involuntariamente ocorrem durante o sono - na definição do dicionário, que inclui aquele atos, para nos deixar cogitar se alude ao sonambulismo.

Durante algum tempo tive esse hábito, por certo, decorrência dos relatos da vida de Jung e suas descobertas. Acreditava que anotar os sonhos me ajudaria a compreender-me melhor, a mim. Continuam lá, anotados como enigmas e desafios à compreensão. Certas imagens continuam fortes, não pela descrição, mas por encontrarem eco nas entranhas de quem sonhou. Outras, sugerem mesmo uma pitada de premonição, mas o conjunto, até para o sonhador é um relato chato, quase insuportável.

Garimpo um comentário pois, é óbvio, não conseguia evitá-los e fazer uma descrição neutra, como devem ser as descrições científicas ou definições de dicionários: O conteúdo emocional não parece razoável, proporcional ao conteúdo que é possível relatar. Só podemos descrever a parte que não é importante. Aí o enigma de alguns sonhos: sua essência é inatingível pelo racional, assim como a vida e a morte.

Ao reler, penso que os sonhos podem ter papel importante na busca de equilíbrio entre razão e emoção ou, entre todos os ingredientes de que somos feitos pois, apesar de repetir há milênios - conhece-te a ti mesmo, continuamos grandessíssimos ignorantes a esse respeito .Percebe-se que construímos um mundo com o predomínio da razão e, até, que respeitamos quando o ser racional olha com desdém o outro, emocional. Por outro lado, é bom não esquecer que emoção pura tanto pode ser a paixão arrebatadora dos Romeus e Julietas, como a ira capaz de destruir tudo a volta.

E você, caríssima leitora, improvável leitor, sonha? Que representações lhe assaltam as noites? Lembra do que sonhou? Que importância você dá ou deixar de dar a essas imagens, o que faz com elas? Tem pesadelos? Construiu um outro universo com espaços próprios, que só você conhece bem e aos quais retorna de tempos em tempos? Há uma turma que você só encontra nos sonhos?

Como é fácil de ver, não temos o costume de conversar sobre os sonhos. Se algum nos incomoda particularmente, recorremos ao analista ou ao adivinho, dependendo de nossa inclinação. Esperamos que algum oráculo o interprete e nos diga o que fazer.

Nossa atitude de passividade, de transferência de responsabilidade, não existe apenas em relação aos sonhos. Com quase tudo, na vida, preferimos agir assim. Achamos ótimo chegar a um lugar desconhecido e encontrar as instruções explícitas: vá por ali, faça isso, depois aquilo, etc. A verdade, é que gostamos de ser manada, tangida pelo pastor. Preferimos não precisar pensar.

Jung conta sobre uma tribo primitiva, que se reunia toda manhã para contar os sonhos daquela noite e aprender com eles. Com que facilidade deixamos de lado as coisas que são, provavelmente, essenciais. Os sonhos, essa banalidade do cotidiano, continuam com seus mistérios - e foi isso que me chamou atenção no comentário antigo -, assim como a vida e a morte. Desafiando nossa compreensão, mas postos quietos, num canto da mente, para não atrapalhar as coisas que de fato dos ocupam e consomem.

Por quê não comentamos nossos sonhos com o mesmo interesse e envolvimento com que falamos dos jogos de futebol, ou tentamos adivinhar os próximos capítulos da novela da televisão?

 

Publicada em 05 de março de 1999

 

 

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