A História da Civilização Ocidental poderia trazer como subtítulo "o dócil rebanho tangido pelo cajado da ganância". Vai-se um quarto do ano (com precisão: será às seis horas do domingo) e continuamos com nosso dinheiro nos bancos e a nos deixar cozinhar em banho-maria para votar sob o chicote da obrigação.
O sol veio pontual, acompanhado de um vento frio, com um filtro da série 81, diria um fotógrafo antigo - hoje, tudo se controla e ajusta no computador - e juntos, o sopro frio inaugural e a luz dourada, assinalaram, alheios àqueles pastores e rebanhos, o deslumbramento do outono e de sua luz.
- Você por aqui, quanto tempo!
- Nunca deixei de estar aqui. Aqui e em toda parte, em cada homem, em cada mulher. Como ao Senhor, a onipresença me é inata. - e pelos lábios esticados no sorrir sarcástico, deixa escapar fumos perfumados de bom tabaco, que os homens já não encontram mais.
- Dá um... - não resisto e, como mágica, tira do nada o cilindro branco que me subjuga e domina. Maldito vício! Não foi preciso acender o cigarro: uma ponta já fumega em brasa.
Satanás se reclina como se fosse dono da casa e de mim. Enquanto fumo, ele cutuca:
- Rodas em círculos sobre as mesmas coisas, repetes as mesmas imagens, tens três ou quatro obsessões, nada mais. Sai, rompe a redoma em que te proteges, rasga a placenta que te envolve ainda.
Dou outra tragada e vejo os sonhos se diluírem na fumaça do cigarro. Ele rasga mais o sorriso e continua:
- Há um mundo lá fora, sabias? Há outras pessoas, há outras cidades, há flores e, para cada Fausto, uma Margarida. Que vale uma alma?
No delírio arranco uma pétala, e depois outra, no quer não quer. O cigarro acaba. Esvazio o cinzeiro. Olho - o espectro se foi...
O sol, mais alto, brilha sem o filtro série 81 que, antes, dourava sua luz. O vento sudeste continua e continua frio.
parte do diálogo é reproduzido de crônica de 27/09/97
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