A volta de Cinderela
10/06/16
No caminho de volta a senhora condessa, recém-resgatada de intenso devaneio pelo conde seu marido, despiu-se gradativamente da fantasia para uma queda implacável na vida como ela é e o que é, a realidade, impõe outro cronista apto a um beijo no asfalto ou a aplicar castigo inclemente a toda nudez. E assim, com vênia do falecido mestre, se prorroga a existência daquela mulher, agora um tanto perplexa diante da exiguidade de seu acanhado quintal e dos trajes surrados de seu cônjuge, um tanto gordo e sem elegância, mui distante da hipotética nobreza finda na morte do Imperador. Ela titubeava entre calar para sempre ou interrogar o esposo na busca de um resquício qualquer da ditosa visita... Na soleira da porta do barraco humilde se diluiu o último vestígio onírico nos vapores de algumas panelas a fumegarem no fogão e da pia cheia de coisas para lavar. Desapareciam ali a carruagem, o cocheiro e demais serviçais de uma ex-condessa borralheira. O cheiro forte de feijão lhe invadiu narinas. – Mãe, o Du não quer me emprestar a revistinha... - falou alto, quase choramingando e a mãe, de volta à plenitude da maternidade, puxou para o aconchego de si o caçula e esperou a inevitável chegada de Eduardo, o Du, a assomar já cheio de justificativas: não posso emprestar, mãe, o nosso herói tá quase pousando... E a ex-condessa, reintegrada à sua personagem atávica, pegou das mãos do filho a revista de histórias em quadrinhos e, aninhando um filho de cada lado, começou a ler as aventuras extraordinárias daquele super-herói com uma pequena e poderosa hélice no cocuruto do boné. – Foi quando ele pousou meio cambaleante no gramado impecável e tirou o boné com a pequena hélice ainda a girar... Ela respirou fundo para evitar uma recaída e continuou a ler pela enésima vez a história que sabia de cor. |
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