A voz

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28/04/98



A voz parecia ser o maior problema. Afinal, seria preciso falar, ou não? Cecília se fazia essas perguntas e lamentava não ter mais prática de confessionário. Se bem me lembro, alguns padres apenas grunhem ou resmungam, pensava, não dava para entender patavina e nem eu estava mesmo interessada... mas aí é que está, quem garante que... aí Cecília parou. Aquele que ouve a confissão é confessor - existe um nome para quem se confessa?

A idéia, vaga e inesperada a princípio, foi tomando corpo e Cecília, pelo menos em sua imaginação, acalentava o sonho de se tornar a primeira confessora - pirata, é óbvio, já que milênio após milênio a santamadrigreja proibira às mulheres ofícios e ritos de servidão a seu Deus. Navegava por essas revoltas saboreando por antecipação a aventura que imaginava, para se perguntar, em seguida: seria mesmo eu a primeira? Duvido! Toda hora descobrem mulheres do passado, que se meteram em tudo que lhes era proibido, nem que para tanto fosse preciso se disfarçar de homem ou tornar-se amante do mais poderoso da ocasião... Duvi-de-o-do.

Cecília vê-se num vestido preto, discreto, reto, longo - afinal de contas, os padres é que imitaram o trajar feminino e isso facilitava as coisas. Fora do confessionário, parecerei apenas mais uma carola toda, ou quase, de preto. É assim que elas se vestem quase sempre. O momento crítico, é óbvio, vai ser a hora de entrar no cubículo e fechar a cortina. Depois é só esperar... e torcer para não vir um padre em vez de um fiel pecador... Bem, se vier, se o padre me descobrir dentro do confessionário, digo que entrei porque senti uma tontura, pensei que ia desmaiar... Vou ficar mesmo tão assustada que ele, na certa, vai acreditar... Os homens são bobos e padre, é antes homem, como qualquer um. Se uma mulher se mostra frágil e, principalmente, se ela chora, eles acreditam em qualquer coisa que ela falar... Bem, o plano é esse: espero ele sair e aí entro eu. Já vi que há uma hora mais ou menos certa para as confissões, um tipo de pacto entre o ministro de Deus e seus pecadores. Quando tem mais gente ele fica mais tempo lá, quando tem menos, vai mais cedo para o claustro! O claustro! Também lá é proibido entrar mulher, exceto num único dia do ano: o domingo de Ramos...

Cecília se espantava consigo por ter aprendido tantas coisas sobre o mosteiro em tão pouco tempo. Seria toda essa história apenas um pretexto, um disfarce e eu estou é ficando velha e carola pouco a pouco? Com efeito, desde que começara a alimentar essa idéia, com papinhas e cuidados especiais, ela passara a freqüentar a igreja, tanto ou mais que as baratas-de-sacristia de plantão. Era preciso estudar o terreno... conhecer o inimigo...

Ao se dizer essas coisas Cecília parou: havia um eco antigo naquelas palavras. Sim, mas que importa isso, agora? O importante era resolver o problema da voz. A voz! O Millôr, aquele que ficou com esse nome, como tanta gente, por causa da caligrafia do escrivão, fez, certa feita, uma página onde se via o desenho de um travesti cheio de setas para explicar que tudo pode ser falso (tanto num homem como numa mulher!) Peruca , seios de silicone, um monte de matéria plástica (já não se usa mais essa expressão!) e sei lá que mais. Tudo! O único detalhe que permitia ter certeza tratar-se do desenho de um homem (?) - sempre segundo o Millôr - era o gogó. Aliás, o próprio nome já diz tudo: pomo-de-adão. O humorista explicava que esse pequeno detalhe era fatal. Mulher não tem gogó. Agora, Cecília lembrava da charge antiga e a corrigia e completava: o problema não é o gogó, ninguém anda reparando em gogó por aí, mas deve ser por causa do gogó que homem tem a voz mais grave... - e, enquanto pensava, passava um dedo pelo pescoço, para conferir...

Ia ser preciso falar, é claro. Se ficasse calada o tempo todo, os pecadores iriam desconfiar e acabariam devassando a cortina, para ver se havia padre, se o padre não estaria, porventura, dormindo, ou mesmo, morto. Não tinha escapatória. ia ter que imitar a voz do padre... É verdade que ela já andava até ensaiando... de preferência, no banho. Lá, no último reduto da privacidade, experimentava várias vozes e jeitos de falar. Via que para conseguir sons mais graves era preciso falar bem baixinho. Tentava imitar o jeito de um bebum, falar quase sem abrir os dentes...

No meio dessas cogitações Cecília percebeu que além da voz seria preciso ter, também, o jeito do padre. Já tinha notado que ali não era como em paróquia do interior, onde só tem um padre e pronto. Cecília já contara, com certeza, pelo menos três monges diferentes no mesmo confessionário... Bom, isso era bom. Assim os mais assíduos poderiam pensar que se tratasse de um outro monge, que eles não conheciam, confessor novato por ali... mas assim mesmo... Cecília tinha a impressão de que as idéias corriam mais rápido do que era possível acompanhar - ... tantos e tantos anos sem se confessar! - suspirou, e as palavras vieram à revelia - nesse suspiro ela se resignava à loucura que se impunha sem muito bem saber porquê. Sim, era preciso se confessar! Era o jeito menos arriscado de aprender o básico. Quem fala primeiro? O padre? O pecador? O que se pergunta. O que se confessa. Ela constatava sua total ignorância do assunto... Era preciso saber, tudo! Sim, estava decidido: ela, Cecília, iria se confessar.



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