Nota: Toda terça-feira você
encontra aqui um folheto de uma história improvável.
O primeiro foi publicado em 21 de janeiro. No índice das
crônicas, é possível conferir passo a passo.
O único e nebuloso plano que existe só está
traçado na imponderável rede das sinapses. Na terça,
três de fevereiro, falhou pelas mesmas razões mencionadas
aqui, que tiraram a crônica "do ar" entre 16/2
e 30/3.
Nem foi preciso convidar duas vezes. Foi como se Irineu usasse as palavras que Frederico demorava a dizer. Escolher um restaurante para comer sem companhia sempre parecera a Frederico coisa meio absurda, uma espécie de pecado. Não o pecado da gula, catalogado entre os sete capitais, mas um pecado mais difícil de definir. Por que fazer de uma coisa banal, cotidiana na vida de qualquer animal, um ato cercado de pompa e circunstância? O maître e seus rapapés, os garçons e a explícita hierarquia de serviçais e servidos, a própria comida, muitas vezes, com mais conteúdo no aspecto do que na substância e sabor... Sim, por causa de tudo isso, fora de casa, Frederico quase sempre preferia o anonimato do balcão de uma simples casa de pasto, à ostentação dos restaurantes, sobretudo, daqueles que, por alguma razão misteriosa, calhavam de estar na moda e exibiam funcionários nas ruas, para abrir portas dos carros, como se fossem a carruagem da rainha, e delas fosse emergir o próprio Papa!
Não, Frederico nunca estava à vontade nesses cenários onde uns acham muito natural serem servidos por outros... mas, com a presença do amigo tudo mudava de figura. Nada mais justo do que almoçarem juntos para conversar. Afinal, há quanto tempo?... - se perguntavam os dois, e tentavam lembrar fatos e datas para calcular. Por isso, quando Irineu perguntou: Você já almoçou? - Frederico pensou: Nossa! Era o que eu ia perguntar. Foram. Agora, pouco importava a espera ou os ritos do lugar, pois este, o lugar, é que importava - um local adequado para poderem conversar.
Depois de atualizar informações básicas, pois há muito não se viam, a conversa acabou nos assuntos que ocupavam as duas cabeças e seus subterrâneos...
- Se você adivinhar de onde venho eu pago a conta - brincou Frederico.
Irineu disse que nem precisaria apostar pois Frederico era mesmo seu convidado e coisa e tal. Depois, arriscou dois ou três palpites e errou todos. Frio, gelado - repetia o amigo a cada vez, numa alusão à brincadeira de chicotinho queimado - nem morno você está. Fala logo, não vou acertar nuca - pedia Irineu. Vou dar uma dica - Frederico insistiu - não foi no inferno, mas se fosse, talvez me espantasse menos...
Estou vindo do Mosteiro, duas quadras aí pra cima! Estou vindo da igreja - Frederico afirmou e, ao afirmá-lo, sublinhou igreja. Não pode ser! Você? Na igreja? Impossível! O que foi? Um milagre? Alguma cura impossível? Uma visão? A Virgem apareceu pra você? A Virgem, nua? - o espanto de Irineu parecia transformá-lo numa metralhadora de perguntas. Como um cara materialista, que tinha participado de ações terroristas durante a ditadura militar, sabe Deus o que mais... Numa brecha, entre uma rajada e outra, Frederico interrompeu:
- Sabe Deus! Essa é boa, a gente não sabe de Deus mas quer que ele saiba de tudo, né? Calma, eu explico. Não é nada disso que você está pensando. Não fui na igreja para rezar. É trampo. Acredita? Em outros tempos não toparia, mas com esse cara, duplo cara, porque é cara de pau também, dizendo que o país terá que aprender a conviver como o desemprego... você ouviu, leu? Eu fico perplexo! Pra ele é fácil, com o salário de um presidente e todo o resto, que não se publica... o próximo passo vai ser dizer que precisamos aprender a conviver com a fome... Frederico viajava fácil. Qualquer coisa era pretexto e, às vezes ia e ia, longe, até esquecer o que dizia quando começara a falar, mas dessa vez voltou:
Tá chegando o aniversário de 400 anos desses caras por aqui. Agora, quem não entendeu foi Irineu: que caras? Do que você está falando agora? Os monges, lembra? Vai fazer quatrocentos anos que os beneditinos aportaram por essas bandas e eles estão programando um monte de coisas para comemorar. Uma delas, é lançar um livro de luxo, com a história da ordem, desde de sua fundação e, é claro, especial destaque para o pedaço em nosso esplêndido berço. Sacou? O que eles querem comigo é só um pedacinho desse livrão: escrever, com sabor de ficção, um pedaço dessa história, misturada com lendas e - o pedaço que mais gostei - tem o demônio como personagem também!
Agora era Frederico que falava sem parar. Parecia entusiasmado com o novo trabalho, mas Irineu já podia ver o velho Frederico ali, diante de si: continua o mesmo, como nos bons tempos - pensava, já que o outro nem brecha deixava...
- Mulheres! Agora, conte-me. Você não falou de mulher - reclamou Irineu, quando o amigo parou de explicar sobre os monges, a biblioteca do mosteiro - uma das coisas que muito o tinha entusiasmado: teria direito de pesquisar na secular biblioteca! e seus planos para o trabalho, que acabara de fechar e tinha caído do céu, com um simples telefonema... Ufa! Parecia difícil interromper o turbilhão. E mulheres? - insistiu.
- Devagar... - foi a primeira coisa que Frederico
respondeu. Depois, ficou pensativo por algum tempo e confessou:
é engraçado... não sei explicar porquê,
mas tenho lembrado muito de uma mulher que só vi uma vez,
há muito tempo atrás...
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