À vera*

09/07/16

Leitora antiga e grande amiga retrucou à crônica passada expondo uma visão muito mais competente (e com maior base acadêmica) sobre a natureza humana, além de esmiuçar sua particular relação com jogos e disputas. Ante suas considerações, lembrei-me de um incidente remoto mas, provavelmente, decisivo na determinação de minha moderada aversão a todo tipo de jogo. Eis minha lembrança mais de sessenta anos depois:

Tinha seis anos de idade e fora aceito na escola pública. A multidão de novos colegas me amedrontava um pouco. Eram muitas as novidades no novo ambiente e eu tentava me adaptar sem denotar "ignorância" nem ingenuidade ou, dito com mais precisão pela gíria, sem dar bandeira.

No recreio, muitos de meus colegas se divertiam jogando bola de gude. Havia diferentes jogos e, quando tentei participar, aprendi ser preciso ter suas próprias bolas de vidro para poder brincar. Em casa, pedi a minha mãe bolas de gude. No dia seguinte, antes de ir para a escola, passamos na quitanda onde se vendiam também as fascinantes bolinhas. De posse de uma meia dúzia delas seguimos para o prédio em amplo terreno da escola, ali perto.

imagem da internet
imagem da internet

Orgulhoso de meu tesouro, na primeira oportunidade pedi para participar de um jogo. Um dos jogadores me perguntou, muito sério: à vera? Eu, pensando ser este o nome do jogo cujas regras igualmente ignorava, concordei e em pouco tempo aprendi o significado de "à vera": o vencedor ganharia as bolas de gude do derrotado. Foi-me arrasador perder assim a maior parte das recém-adquiridas bolinhas de vidro colorido embora, hoje, me pareça um preço aceitável para aprender com precisão o significado daquela locução.

Segui minha trilha por escolas e colégios, sempre bagunceiro, a merecer ali uma carteira separada, junto à mesa da professora, dir-se-ia, "para evitar o pior".

do Houaiss:
do Houaiss
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Sat, 9 Jul 2016 10:31:44 -0300

nossa, que maravilha!!!!! você e o Veríssimo (pau a pau, igualados) são os melhores autores que tenho lido na correria do dia a dia!!!!!!!!!
tadinho do Claudinho sem as bolinhas de gude!!!!!!!!!
(lemra que a Dila falava "deveras"?)

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Não lembrava, mas lembrei...
Foi tão marcante que continua aí, sessenta e seis anos depois...


Sat, 9 Jul 2016 10:35:24 -0700 (PDT)

nao conhecia essa historia das bolinhas de gude
mas lembro muito de vcs 2 jogando bolinhas de gude

eu nao conseguia 'dar a partida' - a q se joga com o dedao a partir do "cestinho" do dedo indicador dobrado ...
nao sei descrever

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Descreveu muito bem. Os irmãos não jogavam à vera entre si...


Sat, 9 Jul 2016 16:07:22 -0300

gostei muito de reouvir essa história... queremos um biz!!!

e volto pro trabalho no dia de folga.
quem mando ser jornalista... (ainda bem)

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Você se lembrou? Que legal!


Sat, 9 Jul 2016 17:38:21 -0300

Oi Clode
Deliciosa!...
Fiquei até ... não sei bem o quê: honrada, emocionada? São muito pomposos. Digamos contente, encantada? - por fazer parte de sua coleção de crônicas. Obrigada!!
E me lembrei de mais um episódio sobre competição: jogando Banco Imobiliário com minhas irmãs (e irmão? Talvez ele fosse ainda pequeno), eu acabava sempre vendendo meus imóveis a preço de banana para que elas não se aborrecessem... Será que isso é tão tolo quanto o (aparentemente) oposto, tentar tirar vantagem em tudo?
Bjs
Ana

Sem rasgação de seda, caberia a mim encabular-me, corar, por poder contar com uma insigne doutora de nossa melhor universidade a abrilhantar essas pequenas crônicas, existentes pelas mesmas razões de dar jabuticaba a jabuticabeira.

Quanto à equivalência de sua atitude com os menores, para mim, sublinha mais uma natureza maternal (e a empatia), enquanto o "quem não quer levar vantagem" evidencia o egoísmo - não me parecem equivalentes, mas quem sou eu para "palpitar" aqui.

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