Não só os pássaros são atingidos pela
troca da noite pelo dia e vice-versa. Até mesmo nas mais
desumanas cidades - desumanas porque estão cheias demais
de seres humanos! - até nelas ficamos tocados quando o
dia clareia, quando a noite anoitece. Há milênios,
sabe-se que são horas sagradas. Tenho uma amiga que sente
uma irreparável melancolia ao perceber o dia findar. Às
vezes liga e diz, apenas: você sabe, fico esquisita nessa
hora. Ela precisa conversar um pouco, como a passarinhada precisa
gritar e cantar.
Ficamos deslumbrados porque o dia não falha e a noite,
com certeza, também virá. Li há muito tempo,
em algum lugar, que uma tribo qualquer cumpre um ritual todas
as madrugadas, para que, daí a pouco, o dia não
deixe de aparecer. E o dia vem. O dia não falha. Não
se tem notícia de uma única vez, que tenha faltado.
Em toda minha existência não o vi, nunca, falhar.
Ora, no mundo dos Homens, tudo falha. Nenhum engenho humano deixa
de, vez por outra, pifar. Alguns, de vez em quando, conseguem
funcionar. E o dia promete e o dia amanhece com toda certeza que
vai acabar.
Vocês já viram porque enrolo dessa maneira e disfarço
com toda essa prosa: a crônica falhou. Se alguém
veio cedo, como cedo se vai buscar o pão, teve a decepção
de encontrar pão dormido. Pior: era pão comido.
Ora, imagine, leitora fidelíssima, a reação
da torcida se seu Joaquim avisasse - ou colocasse uma simples
tabuleta na porta da padaria - anunciasse à turba sedenta
de pão fresco: - hoje, não vai ter pão, falhou.
Não ocorre. Os poderosos pagaram caro a lição
e, hoje, cuidam com desmedido zelo, para que isso não volte
a acontecer. Aliás, encontrei ontem, perdida na caixa do
correio eletrônico - só depois disso aceitei a idéia
de chamá-la de caixa - uma cartinha perdida. Sim, ficou
lá, sem que a percebesse, desde segunda-feira, e agora,
está publicada. Nela, menciona-se a célebre falta
de pão...
A crônica falhou. Que dizer? O leitor veio, e nada. Humano,
demasiado humano - e de novo olho encantado o título de
Nietzche, que de tão deslumbrante, quase prescinde do livro
- humano, apenas humano. Invejamos a obra perfeita, sem falha
ou possibilidade de falhar. Buscamos com um afinco, muitas vezes
descabido, atingir essa perfeição. Fosse deus, e
a crônica estaria aqui, na madrugada, sem contratempos -
divina, demasiado divina. Comecei a tentar dizer essas coisas
- a inveja dos deuses era mesmo o tema de que começa a
cogitar, madrugada a fora, apostando corrida com o Sol, para ver
se conseguia acabar antes dele voltar do Japão, mas travou.
Os dedos trocavam todas as letras. A próxima linha não
tinha jeito de acabar. Ah, os deuses podiam fazer coisas perfeitas
e eu, não.
Mas o que ocorreu-me, na madrugada e não disse até
agora, era o errar, essa coisa tão humana, pode ter lá
suas vantagens. Durante dez anos assinei uma revista científica.
A explicação é simples: cada louco com sua
mania. Um belo dia, melhor: um belo mês, vem na capa de
revista um lindo desenho de um piano de cauda. Amarelo! Já
tinha visto pianos de cauda branco, rosa, mas aquele era o primeiro
amarelo que via. Tratei de saber o que o piano fazia numa revista
que, costumava falar de partículas subatômicas e
campos eletromagnéticos e outras amenidades.
Vivia-se a explosão dos computadores. Alguém teve
a idéia de pegar o tal piano e com auxílio de aparelhos
computadorizados de medição e sei lá que
mais, afinar o instrumento com absoluta precisão matemática!
Ah, deuses, como invejamos vossa suposta precisão absoluta
e matemática! Feita a afinação, nota por
nota, corda por corda - alguma notas têm três cordas!
- chamaram algum grande intérprete para testar a maravilha.
Adivinham o resultado? Sim, o piano amarelo estava afinadíssimo,
sem dúvida, mas por qualquer razão misteriosa, o
som era chocho, não enchia o ambiente. Um som oco, desagradável
aos humanos ouvidos. A experiência prosseguiu. Chamaram
um afinador de piano, gente, humano, cheio de falhas e defeitos,
como qualquer um de nós. O velhinho chegou - a revista
não especifica um velhinho, mas a história fica
melhor assim -, chegou e afinou o piano, com sua chave, sua orelha
e o diapasão, como faz todo afinador de piano. Volta à
cena o intérprete. Sonatas, noturnos, polonaises e danças
voltam a encher o teatro.
Perplexos, os cientistas começam a medir como estava afinado
o piano que o afinador acabara de afinar. Para surpresa geral,
estava ligeiramente "desafinado". Havia uma pequena
diferença entre os números exatos da matemática
e aqueles, capazes de produzir um som de encher os ouvidos. Principalmente,
me lembro, nas notas de duas ou três cordas - grande maioria
num piano - nessas notas, havia a tal diferença mínima,
de uma corda para outra, da mesma nota! Quando, com o auxílio
de toda tecnologia se punham as cordas exatamente iguais, com
exatidão matemática, o som ficava chocho...
Talvez conte essa história para mim mesmo, para tentar me convencer que há um encanto escondido em toda imperfeição... talvez continue apenas querendo aceitar nossa condição humana, demasiado humana.
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