Chega uma mensagem eletrônica de Londres. A voz de um amigo, mesmo escrita, parece mais distante diante da distância geográfica. A aldeia global parece pura ficção ou apenas brinquedo dos poderosos, que caçam e disputam clientes nos rincões mais sossegados. Nem os aviões, nem o telefone, nem a Internet, nada muda o fato de que Londres está longe. Se olharmos para o espaço, eu e o meu amigo, veremos estrelas diferentes. Não podemos, sequer, comentar as mesmas constelações.
Ele procura notícias de cá, quer gritar junto com milhares de vozes o gol de Romário e sair pelas ruas do Rio, como tanta gente na segunda-feira, com a camisa que apelidaram de manto sagrado. Mas está em Londres, no tempo zero zulu, a antiga capital do império global. Fala do sol, coisa rara por lá, mas que nessa época chega cedo e só se vai com noite alta, pois o planeta volta para a estrela Sol o pólo norte e nos deixa aqui, no hemisfério dos pobres e das águas, apontando para fora da órbita, com doses homeopáticas de sua luz e calor. Hoje pela manhã, a temperatura no Rio, era de 20 graus. Imagino que, em Londres, nem considerem isso frio. No entanto, os cariocas devem ter tirado seus agasalhos mais pesados do armário.
A aldeia global é uma armadilha. Somos, é claro, uma só humanidade espalhada pela bola terra. Mas não existe esse sentimento em nós - quem são os chineses? Quem é a mãe chinesa cujo nome ignoro e que vive numa aldeia que nem sei da existência e planta arroz - ou seria outro alimento que, nem usamos por aqui? - e cria seus filhos - ou seria um só? - e recebe com carinho seu marido - ou seria submissão? - e assim com cada uma das outras bilhões de mães - inclusive aquelas que ficaram "orfãs" de seus filhos nas estúpidas guerras e cada um dos bilhões de pais, e de avós e avôs e filhos e filhas e cada pessoa, cada um, inclusive os bilhões que são apenas chamados de pobres, ou paupérrimos, para fins estatísticos.
Não existe o sentimento de sermos essa humanidade, em cada um de nós. A empresa, essa entidade abstrata, embora feita pelos homens e constituída de pessoas, ela pode ser multinacional e querer um mundo unificado como mercado. Constrói a imagem da aldeia global segundo seus interesses comerciais. Compramos essa imagem assim como acreditamos precisar de milhares de produtos e serviços que, mal acabam de inventar, nos convencem de que não podemos viver sem eles - apesar de que, há pouco, nem sequer existiam. É uma arte cruel, essa do convencimento em massa. (O Brasil e a Inglaterra, parece, estão entre os campeões nessas artimanhas do engodo.)
Acreditamos, por exemplo, que o sanduíche de carne moída é melhor que o prato feito, com o velho arroz, feijão, bife e salada. Acreditamos que se não usarmos desodorante teremos um cheiro ruim. Mentira! Até minha adolescência não existia desodorante, pelo menos desse lado do planeta, e as pessoas não fediam. Eu, até hoje, jamais usei isso e estou convencido de que, se usar uma só vez, passarei a depender de desodorantes pra sempre. Tudo vira vício. Acreditamos em qualquer besteira de que nos queiram convencer, até que seremos mais isso ou aquilo se nos matarmos aos poucos com o tabaco.
Foi assim com os índios, que moravam aqui, quando os portugueses chegaram. Acreditaram que a civilização da pólvora e da cruz era melhor ou, pelo menos, ficaram "tentados" pelas cores brilhantes das miçangas e outras ninharias. Eram saudáveis a ponto de espantar Caminha: "Eles não lavram nem criam. Não há aqui boi ou vaca, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão o inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isso andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos."
Qual é mesmo a imagem de paraíso perdido que se esconde nas entranhas de cada um de nós?
Publicada em 28 de abril de 1999
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