Ela não raspa o sovaco e me olha com olhar de mistério que não sou capaz de decifrar. Ou, quem sabe o entenda uma parte de mim submersa em dobras e entranhas do mistério maior que nos faz iguais e diferentes ao cavalo, ao gato, ao gavião e a tudo mais. É inacreditável que um simples olhar possa assim nos cativar.
Ela está reclinada e se apóia sobre o cotovelo esquerdo. Não sorri e tem no rosto a dignidade que poucos podem. Os braços fortes, quase masculinos dir-se-iam cultivados no campo e, não, no toucador. Com o direito abraça a coxa direita, o que mantém as pernas afastadas e leva a um gesto de quase carícia da mão, grande, próximo ao seio direito, como se o apalpasse, muito de leve. A mão direita, de unhas quadradas, se derrama pelo chão, relaxada.
Tudo insinua e quase convida, mas não.
Ela continua a me olhar. É quase impossível livrar-se desse olhar para descrever o resto, como o vestido azulado - ou seria uma camisola? - com rendas ou recortes nas barras e caimento descuidado, cheio de entranhas e recheios. Ou os sapatos de salto grosso, amarrados com laço, de bico preto e couro verde, mas de verde menos azulado que o das meias - as meias! - em verde mais vivo, que lhe sobem até o meio das coxas, separadas pelo aperto do abraço, como disse e, meias verdes que dão nome à obra.
Pasma-me mais que toda elegia ao feminino ou o sutil erotismo que Egon Schiele põe no papel, em Reclining Woman with Green Stockings, tratar-se de um desenho. Não é um óleo e muito menos uma fotografia com todos os recursos da maravilhosa tecnologia que nos cerca, inunda e sufoca - apenas um desenho e lá está, inteira e fascinante, a mulher de sovaco peludo e alma no olhar.
Egon Schiele - Reclining Woman with Green StockingsA obra é considerada como da maturidade. É de 1917. Schiele morreu no ano seguinte, aos 28 anos. Ano em que também acabou a primeira guerra mundial.
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