Outro dia o noticiário alardeava, mais uma vez, a realização de um velho sonho do homem graças ao sucesso obtido em experimentos científicos: teletransportar. Parecia iminente o velho sonho da máquina capaz de fazer com que uma pessoa vá de Trabiju à Tóquio numa fração de segundo.
A notícia não é nova e, como de outras vezes, a "matéria" que desapareceu em um local para surgir um metro adiante, no laboratório, foi um fóton. No início deste século, ainda se disputava se o fóton seria ou não matéria e, hoje, até a definição do dicionário frisa ser nula sua massa em repouso. Não tenho a menor idéia - e nem a notícia mencionava - qual o "documento de identidade" usado para certificar que o fóton que desaparecera num ponto do laboratório fosse "o mesmo" criado noutro.
O verbo vai sublinhado, pois a apresentadora que, em geral, parece mais preocupada com a própria aparência do que com a notícia, explicou entusiasmada que, quando se chegar ao estágio de teletransportar seres humanos, o que será enviado de um lugar a outro, é a "fórmula" do indivíduo, para que ele seja, então, reconstruído "lá", no destino, com outros átomos, outras moléculas, outras células, e não, com as mesmas existentes no "local de partida"...
Eis a afirmação mais surpreendente que já ouvi sobre a natureza de nossa individualidade, feita assim, como apêndice de outra notícia, sem qualquer importância em si. A acreditar no que disse a moça da televisão, cada um de nós é "uma fórmula", e nada mais. Pouco importa o envelhecimento de cada célula de meu corpo, dos tecidos, humores e químicas que o constituem, nem mesmo daquelas partes do sistema nervoso, dizem perenes enquanto existimos, incapazes de se regenerar. Somos um software, o mundo está povoado por bilhões de softwares, diferentes um do outro e, quanto aos hardwares, tanto faz - sempre se poderá comprar outro na loja da esquina!
Você leitora deliciosa, macia e improvável não seria essa coisa macia e gostosa que se imagina e que destina a alguém seu calor, sua maciez, seu cheiro etc. A se acreditar na tevê, tudo isto é apenas um amontoado de matéria, que o acaso tornou disponível para um dado periodo e local. Você, doce leitora, em sua essência, em sua individualidade, seria apenas aquela "fórmula", passível de ser transmitida para qualquer lugar para, lá, se fabricar você de novo, com outros fótons, outros elétrons, outros prótons e nêutrons etc. Para um lugar onde você surgiria com células fresquinhas, recém fabricadas - jovens como as de um bebê! - porém, com toda sabedoria e todos os vícios e taras e tudo que faz um adulto, que você é.
O software seria a fórmula da alma, esta coisa tão imponderável e misteriosa que, agora, já se cogita mandar como cartas pelo correio, eletrônico ou não.
Publicada quarta-feira, 14 de julho de 1999
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