Simples

 

Não se chega à simplicidade por meio de nenhum estratagema, de nenhum plano, de nenhuma arquitetura. Propor a simplicidade, para si ou para o que quer que seja, já é complicado, longe de tudo que é simples. A simplicidade só pode existir se for espontânea e a espontaneidade, da mesma forma, também só pode existir sem intenção.

Veja como uma criança pequena desenha, por exemplo. Risca o papel e se deixa conduzir pelos rabiscos que surgem. Aceita o que um traço pode evocar, aproveita os erros para tomar novos rumos e, sobretudo, não pretende nenhuma perfeição. Não se julga "artista" e nunca ouviu falar em obra de arte, muito menos, obra prima. Depois, olhamos o desenho da criança, qualquer criança, e ficamos embasbacados. O que nos deixa pasmos é a liberdade, a ausência do juiz, que sentencia, a cada movimento do lápis, "está bom", "está errado", "você é grande", "leva jeito", "tem dom", "não tem" etc. É esse juiz que trava, que faz o traço vacilar, titubear. Essa falta de liberdade impede a espontaneidade.

Há dois anos, quando este velho impotente computador, que faz estas páginas, era novo e poderoso, mostrei a autora do desenho da página de abertura um programa gráfico, que eu mal conhecia. Ela pegou o rato, como dizem os donos da língua, d'além mar, e ensaiou uns rabiscos. Não sei se pela novidade ou por não acreditar muito na ausência de papel, de lápis, de tintas e tudo mais, no segundo ou terceiro desenho fez um rosto de mulher. Achei absolutamente fantástico o resultado, pela síntese, pela economia de traços, por ser expressivo. Depois, fechamos os olhos da mulher, em outro desenho, para testar outro programa, de animação - tudo era novidade! Assim nasceu Madame Medula:

desenho de Luciana Guidorzi

A desenhista tentou, depois, outras peripécias com mouse e todo o arsenal de vários programas gráficos, para concluir que bom mesmo é desenhar com tintas, lápis, canetas, muito papel e uma mesa bem grande. Ficou este desenho, única obra da autora cem por cento digital.

A simplicidade não pode ser atingida por meio de astúcia, de nenhuma artimanha. A simplicidade, assim como a espontaneidade, só pode existir quando se abre mão de planos, dos desejos de conquistar isso ou aquilo, dos ardis para obter sucesso assim ou assado etc. Até tentar definir o que é ser simples e espontâneo é muito complicado.

 

Publicada quarta-feira, 7 de julho de 1999

 

 

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

 

 

197