Crônica do dia

Alma de gato

06/12/05

Choveu muito na madrugada. Quando parou, pela manhã, gotas de chuva bordavam a vegetação e, à contraluz, se transformavam em preciosas jóias, quer pelo brilho intenso e impecável, quer pela forma perfeita, a própria e a das plantas que desenhavam como trabalho paciente de mãos habilidosas.

A beleza e a feiúra não se mostram a olhos apressados. Às vezes, vejo um rapaz descer a rua no rumo de casa. Segue em passadas largas e batidas, duras e sempre cabisbaixo, olhos voltados a seus pensamentos. Jamais me vê. Não me percebe a pouca distância. O vejo e nele a mim quando, também antes dos vinte anos, vivia a transbordar sonhos, hormônios, idéias, planos e energia. Cego, todavia.

Sobre um galho morto, bem perto, pousa um pássaro grande e imponente, ainda jovem. Está do lado de lá da vidraça e, por isso, não sente minha presença. Tem um longo rabo, maior que resto do corpo e plumagem marrom-claro. As penas, muito novas, ainda parecem plumas. Como estão eriçadas lhe aumentam o volume.

Tudo realça um ar de bebê nesse exemplar. Ele olha para um lado, para o outro mexe um pouco nas penas e se vai. Ah, eu sempre invejei os pássaros por poderem voar, ou melhor, por poderem olhar tudo lá de cima. Do vôo, é o que me fascina, inclusive nos sonhos ou, talvez, nos sonhos ainda mais.

Por aqui, as pessoas simples chamam a esta espécie de alma-de-gato, por que seu piar parece um miado, um lamento. Mas, seja pela chuva, seja pelo que for, por enquanto há silêncio e poucos pássaros se mostram.

desenho de Lu Guidorzi
desenho de Lu Guidorzi

As dez, mais ou menos, começou a cantoria da passarada. Pouco depois surgiu um pedaço de azul no céu e o sol aqueceu a alma da natureza. De repente, os pássaros que faziam algazarra calaram. Sumiram. Dois gaviões voavam baixo sobre o pedaço. Venta.

Há promessa de muita chuva para o fim da tarde. O verão está logo ali.

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