Crônica do dia

Apelo

29/09/05

Ao fundo, a sudoeste, um céu ainda nublado e escuro. Não neutro como o cartão que a Kodak vendia há anos (talvez ainda o faça e venda, apesar dos fotoshops e recursos similares). A noroeste, esboça-se o primeiro azul. A bruma se desfaz rapidamente com os primeiríssimos raios de sol, ainda tênue, que anuncia o fim de tanta umidade. Na encosta oposta, apenas uma ou outra casa recebe esta luz primeira e quente, peneirada por nuvens que não posso ver.

Cena encantadora de durações fugaz. Antes do fim do parágrafo toda a abóbada se toldara em nuvens. Neste instante Cartier-Bresson via a verdadeira fotografia. Chamava-o decisivo. Eles continuam a desafiar a visão, a perspicácia e tenacidade do fotógrafo. A tecnologia imita o homem e, em muitos aspectos, o supera... mas não se trata de competição.

Depois, fechou mais e começou a ventar, vento frio, fraco e cortante. Repito: tem gente que gosta de frio. Aceito, não discuto gosto - eis quando o acento diferencial faz falta! - Às vezes, até acredito no que dizem, eu detesto. Não assisto a filmes com predomínio de inverno e neve. Himalaia e Andes, nem pensar. Não tenho gelo na geladeira. Tem gente que gosta de frio, eu detesto.

Abriu, fechou, abriu, fechou. Este é um ano molhado. Formigas fizeram uma montanha em forma de vulcão ao redor da boca do formigueiro. Se fossemos comparar pelo tamanho, tinham feito um Himalaia. Agora, traziam minúsculas pérolas brancas - ovos ou larvas? - para tomar sol, sob aquela terra fofa, recém aquecida e seca. É preciso cuidar com zelo da descendência. Toda vida depende disto.

A ação daquelas formigas operárias, assexuadas, e nossos sonhos sexuais mais inconfessáveis têm uma origem comum. É, como disse Gide, o apelo da vida a si mesma.

O dia seguiu, cheio de nuvens e com vento frio...

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