Autorretrato
03/10/16
Um levantamento estatístico, é quase certo, mostraria ser o autorretrato (agora "selfie") o gênero de fotografia que hoje mais se produz. É possível constatá-lo a cada passo, por toda parte. Existe uma multidão convicta de ser, cada um, o mais relevante sujeito para uma fotografia. Tal preferência talvez resulte de nosso modo de evoluir, ao longo de muitos milênios, valorizando a individualidade acima de tudo e enfatizando as características mais egoístas. A idolatria do eu, uma visão voltada ao próprio umbigo, a falta de empatia, aliados à simplificação e ao baixo custo da fotografia digital, resultaram em um fabuloso oceano de autorretratos a transbordar nas chamadas redes sociais. Ao surgir a Fotografia, logo ficou claro ser o rosto humano seu tema por excelência. Muito no início, diferentes suportes eram usados para imobilizar o modelo durante as longuíssimas exposições e, conforme os filmes ficavam mais sensíveis, mais o retrato se confirmava como tema predileto, a ponto das câmaras fotográficas serem chamadas de "máquinas de retrato". Acreditei por muito tempo ser a beleza intrínseca de um rosto, sua expressividade e nossa extraordinária competência para decifrar as mínimas alterações de fisionomias, detectar o íntimo estado de espírito em sutis alterações faciais as razões profundas daquela predileção. No século dezenove os retratos de família se tornaram uma cerimônia quase ritualística, como o ir à missa no domingo. Na atualidade, em cada bolso, em cada bolsa, dorme uma câmara disfarçada de telefone e o custo de uma imagem tende para zero. Seja por uma maior solidão do indivíduo ou pela dificuldade de verdadeira comunhão com a multiplicação de "meios de comunicação", o autorretrato entra em cena com a mesma naturalidade de quem resolve sozinho suas urgências sexuais.
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Mon, 3 Oct 2016 09:49:27 -0400 (EDT) Querido Clode, Prima predileta, |
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