Edição revista e acrescida de um posfácio
Diante da pergunta, o menino hesitou um instante e lascou:
- Fotografia?... É quando a televisão pára de mexer, fica tudo paradinho e a gente pode olhar as coisas devagar. É o maior barato!
A resposta é intrigante: substitui o fluir da própria vida, o passar incessante do tempo, pelo correr de um filme ou de uma fita de vídeo. Fotografar passa a ser o ato de parar o fluir de uma imagem já existente, não o processo de obtenção e reprodução dessa imagem.
Nosso menino, convivendo com a televisão desde que nasceu, não questiona a existência das imagens, não se impressiona com a possibilidade de obtê-las e reproduzi-las. Para ele, o mundo das imagens existe, e pronto. Já para nossos avós, que assistiram, em meados do século dezenove, ao nascimento da fotografia, a coisa era um pouco diferente. O que mais os impressionava era o fato de ser possível obter uma imagem "sem o auxílio da mão do homem" - como se dizia então. Parecia mágico - quase bruxaria - que uma máquina pudesse produzir imagens tão perfeitas de qualquer coisa que se colocasse diante dela.
Chegavam a afirmar, maravilhados, que um pintor devia considerar a fotografia de uma paisagem como a própria cena ao vivo, tal a fidelidade da reprodução. Era - diziam - como trazer a própria natureza para dentro do estúdio, e argumentavam que uma fotografia era, sem dúvida, obra da natureza, uma vez que a imagem era obtida pela ação da luz, automaticamente, sem intervenção humana. Surgia assim uma confusão que, infelizmente, deixa suas marcas até hoje.
Afinal, o que é fotografia? A possibilidade de parar o tempo, retendo para sempre uma imagem que jamais se repetirá? Um processo capaz de gravar e reproduzir com perfeição imagens de tudo que nos cerca? Um documento histórico, prova irrefutável de uma verdade qualquer? Ou a possibilidade mágica de preservar a fisionomia, o jeito e até mesmo um pouquinho da alma de alguém de quem gostamos? Ou apenas uma ilusão? Uma ilusão de ótica que engana nossos olhos e nosso cérebro com uma porção de manchas sobre o papel, deixando uma sensação tão viva de que estamos diante da própria realidade retratada? Ou, ainda, o prodígio que nos mostra a face oculta da lua; o momento exato em que o espermatozóide penetra o óvulo; a bala de revólver que acaba de cortar ao meio uma carta de baralho; a complicada estrutura de uma bactéria ou nuvens de estrelas numa distância tão grande que nem podemos suspeitar?
Fotografia é tudo isso e mais um monte de coisas também. Fiz a pergunta a várias pessoas - inclusive alguns fotógrafos - e não houve sequer duas respostas iguais. A pretensão deste livrinho não é encontrar uma resposta definitiva, tampouco esgotar o assunto. Também não se trata de um manual sobre fotografia, muito menos de um manual técnico sobre fotografia.
Quando se fala em aprender fotografia, logo se pensa em técnica: nos mistérios do laboratório, nos truques e segredos da iluminação, em filtros capazes de operar milagres e outras fantasias assim. É compreensível que todo esse mundo meio mágico exerça grande fascínio e atração. Afinal, existe uma aura mística envolvendo tudo isso. Ser fotógrafo é um pouco como ingressar - num clube privado onde só alguns eleitos são admitidos.
Cria-se assim uma divisão simplista e errada do mundo em relação à fotografia: de um lado, ficam os que entendem do assunto e são, portanto, fotógrafos; do outro, os leigos, que não entendem nada de fotografia e, mesmo que usem uma câmara de vez em quando, não são fotógrafos. Esta é uma visão estreita e deformada. Ninguém exige que você seja músico para gostar de música e entender muito ou pouco do assunto. Nem só os poetas devem saber ler e escrever, assim como nem só os fotógrafos devem ter acesso à fotografia.
Emst Haas, fotógrafo internacionalmente consagrado, diz que a fotografia é "a manifestação democrática de uma arte aristocrática". Esta interessante colocação pode explicar muita coisa relacionada com nosso tema.
No momento em que a fotografia surgiu, os homens estavam em plena lua-de-mel com a Máquina. A indústria parecia ter vindo para resolver todos os problemas da humanidade. As linhas de montagem e o poder das máquinas a vapor surgiam como uma garantia de progresso e prosperidade para todos. A industrialização tornava tudo mais barato. Cada um podia ter acesso a um número maior de bens antes inatingíveis. Neste contexto, a fotografia emergiu quase que como uma forma industrial da imagem, apoiada na misteriosa "máquina de pintar". Para uma humanidade apaixonada, os frutos da Máquina eram sempre bem-vindos.
A fotografia trazia vários aspectos democratizantes: primeiro, um número muito maior de pessoas poderia empreender a aventura, antes restrita a uma elite da transformação de suas emoções, pensamentos, modo de ver em imagem passível de ser difundida, analisada e criticada.
Em principio, não é necessária nenhuma habilidade especial para produzir imagens fotográficas, ao contrário do que acontece com a pintura, a gravura ou o desenho. Abria-se assim uma porta larga, fácil e barata ao Olimpo reservado a artistas, apesar dos protestos veementes de muitos pintores, que se sentiram ameaçados por uma concorrência desleal. Surgiu então uma discussão que perdura até hoje, mais inócua que a determinação do sexo dos anjos: a fotografia é arte?
Em segundo lugar, a fotografia tornou possível a qualquer pessoa a posse de imagens, e de início assumiu uma importância decisiva a posse de sua própria imagem - seu retrato (antes, poucos podiam pagar os - trabalhos de um pintor!)
Em pouco tempo, a fotografia começou a produzir outros tipos de imagens. Entre elas, algumas mostrando condições subumanas de trabalho e existência. Emergia uma incômoda realidade, muito diferente daquela idealizada e registrada pelos pintores. Eram imagens cruas, que por sua simples existência impunham alguma providência, imagens que clamavam contra um estado de coisas que não se podia mais fingir não ver. E a imagem fotográfica, ao atingir um número cada vez maior de pessoas, adquiriu um aspecto democrático ainda mais sutil.
Analisar os dados que a vida nos coloca, permanentemente, diante dos olhos implica assumir a posição de espectador. O filósofo, - de qualquer tipo - no fundo é sempre um espectador do grande circo da vida. Para o homem comum, consumido pelos problemas de seu cotidiano, é muito difícil assumir esta postura e, portanto, ser capaz de analisar ou compreender a complexidade que o envolve. Sendo também um ator, ele não consegue se pôr à margem para pensar. A imagem da vida, na fotografia e, posteriormente, no cinema e na televisão, torna mais fácil, para o homem comum, assumir a posição de espectador, levando-o a reconsiderar muitos dos valores estabelecidos. Trazendo-lhe em forma facilmente assimilável uma visão muito mais ampla de seu universo, distribuindo mais democraticamente o conhecimento e o pensamento da humanidade. A imagem não está limitada pela barreira dos idiomas ou da alfabetização.
Excetuando alguns problemas especiais, fazer fotografia é muito fácil e não exige conhecimentos profundos de nenhuma ciência. Talvez a maior exigência seja exatamente um conhecimento o mais diversificado possível. Assim, preferi abordá-la como uma linguagem que, bem ou mal, vem sendo usada intensivamente tanto pelos fotógrafos como por quase todo mundo. Escolhi alguns aspectos que me parecem estimulantes, ou intrigantes, para que você possa pensar no assunto e tirar suas próprias conclusões.
A proposta não obriga a uma leitura linear.
Cada capítulo é mais ou menos autônomo e pode ser lido isoladamente, abordando temas que levam a pensar sobre fotografia. Sobre a fotografia como um meio de expressão pessoal. Sobre seu lugar no contexto das artes visuais. Sobre a maneira como reagimos à imagem fotográfica, a outras imagens e à própria realidade representada. Sobre sua importância para os milhões de pessoas que diariamente documentam - sem maiores pretensões - seus amigos, seus familiares, suas conquistas pessoais, suas alegrias (insucessos e tristezas dificilmente são documentados pelos envolvidos, embora seja o tema preferido da imprensa).
O último capítulo dá uma visão dos passos e tropeços da fotografia na busca de uma sintaxe própria, sempre esbarrando e se confundindo com sintaxes alheias.
É muito pouco para dar uma visão da história da fotografia ou equacionar um problema que ainda é vivo e atual. A intenção é, apenas, despertar a curiosidade daqueles que vão, eventualmente, continuar esta história. O livro todo, aliás, poderia ser encarado assim.
Talvez lhe pareça estranho um livro de fotografias cheio apenas de palavras, sem fotos. Talvez seja, mas há boas razões para explicá-lo: primeiro, tivemos de optar entre um livro de imagens ou de texto. O próprio formato da coleção, sua proposta editorial e a vontade de conversar sobre fotografia indicavam a segunda opção. A imagem não é meio adequado para lidar com as idéias (este tema, sim, é discutido adiante). Depois, há imagens que perdem muito de sua força se não forem impressas com muito capricho num papel muito caro. As melhores reproduções de fotografias monocromáticas são obtidas com duas impressões! Sim, uma para as sutilezas dos tons claros e outra para obter detalhes escuros e um preto profundo. Por fim, existe o problema de direitos autorais das imagens. E a maior parte das fotos que gostaríamos de mostrar pertence a coleções ou autores do exterior e implicaria uma complicada burocracia para obtenção das cópias originais.
Assim, ficamos com a segunda opção: vamos falar de fotografia. No final do livro você encontrará uma bibliografia que indica obras onde é possível curtir algumas das mais importantes obras fotográficas. A bibliografia não é exaustiva, o que seria praticamente impossível, tal a quantidade de livros de imagem que têm sido editados nos últimos anos. Quase sempre são livros caros, pelas razões já explicadas, mas alguns podem ser vistos em bibliotecas (já existem algumas especializadas). De qualquer forma é muito importante, para quem se interessa por fotografia, ver muita fotografia; conhecer a obra de seus monstros sagrados, um pouco de sua história (principalmente sua história visual) e ir fazendo suas descobertas neste universo de superprodução da imagem.
A resposta do menino deve ter tido sua origem num sonho milenar da humanidade. O sonho de poder reter, pegar, guardar a imagem refletida por um espelho ou por uma poça d'àgua qualquer. A fotografia realizou este sonho, inaugurando uma nova era de civilização, onde a imagem tem, sem dúvida, um dos papéis principais.
A chegada do grande frio foi tão repentina e inesperada que pegou toda gente de surpresa. Foi um frio tão intenso, instantâneo e inexplicável, que cada um foi petrificado do jeito que estava quando o frio chegou. O pai, estirado no sofá, com o jornal aberto nas mãos, olhando por cima dos óculos; a mãe, com um dedo na tampa do bule para não a deixar cair, servia o café; o menino, que entrava na sala, ficou com o pé levantado a apenas dois dedos do chão e a filha, com a boca entreaberta e um princípio de gesto nas mãos.
O grande mágico entrou em cena a caráter, com cartola, capa e varinha, como convinha à gravidade da ocasião. Diante dos espectadores fez um gesto solene e pronunciou palavras incompreensíveis. Os espectros paralisados foram diminuindo até ficarem bem pequenininhos. Uma pausa, um novo gesto e, como mímico que vai pegar algo invisível, fez surgir do ar uma folha de papel. Então, com extremo cuidado, recolheu as imagenzinhas, uma a uma, e colocou-as sobre o papel. Depois, começou a girar lentamente o parafuso de uma enorme prensa e pronunciou, com os olhos cerrados; em timbre forte e claro, a palavra final; um breve clarão, alguma fumaça e um leve estampido - foi-se uma dimensão.
Sorriu, seguro do poder de sua mágica, e anunciou triunfante:
- Senhoras e senhores. Acabais de presenciar a mais revolucionária mágica de todos os tempos! Suas conseqüências para as gerações vindouras são imprevisíveis! Eis aqui, aprisionado nesta folha de papel, um fragmento do tempo, um instante preservado que não se perdeu como se perdem todos os instantes. Aqui estão os quatro num momento sereno de sua vida familiar. Olhai de perto, examinai! Cada um exatamente como é, exatamente como estava no momento em que desapareceram diante de vossos olhos. Nem um fio de cabelo se perdeu, nada! Está tudo aqui, numa réplica perfeita da natureza! Examinai, senhoras e senhores!
O primeiro, assustado, mal conseguia fixar os olhos na imagem que o grande mágico lhe oferecia para examinar. Não tocou no papel e parecia encabulado, como se as pequeninas figuras o estivessem observando também, mas a curiosidade trazia seus olhos de volta ao papel... O segundo era um pintor. Tomou, ávido, em suas mãos a nova maravilha e a perscrutou por longo tempo com olhos experientes. Buscou, incrédulo, a mínima falha na perspectiva, nas proporções, no equilíbrio de luz e sombra e em todos os outros requintes da técnica que supunha dominar. Nada encontrou que pudesse criticar. Pasmado diante de tão perfeita verossimilhança, vaticinou com um gesto teatral de dor profunda e resignação: "A pintura está morta!" O próximo era funcionário de um banco, que juntava dinheiro e sonhos de se tornar um grande industrial. Pegou com cuidado o papel, como quem pega algo valioso, e seus olhos se iluminaram. Sorriu, nada disse. Tocou com as pontas dos dedos a superfície da imagem antes de passá-la ao seguinte, um escritor. Impassível, o grande homem examinou detidamente a imagem e, depois, muniu-se de poderosa lupa, dessas de relojoeiro, e investigou minuciosamente cada detalhe. Satisfeito, declarou: "Se examinarmos um trabalho artístico comum sob poderoso aumento, todos os traços de semelhança com a natureza desaparecem; aqui, o mais minucioso exame revela apenas a mais absoluta verdade, a mais perfeita identidade de aspecto com a coisa representada".
Depois chegou a vez de outro pintor, que, após contemplar com visível deslumbramento o pequeno milagre, comentou apenas: "Como lamento que esta invenção maravilhosa só tenha chegado tão tarde!" E assim foi, de mão em mão, até chegar ao professor. Olhou a imagem muito tempo, depois deixou seu olhar se perder no espaço e profetizou: "Eis o passo decisivo da era do Homem Tipográfico para a era do Homem Gráfico".
Nem sempre o relato imparcial dos fatos, ordenados numa seqüência lógica, ou cronológica, é mais elucidativo que a ficção. O grande frio nunca existiu, tampouco o mágico ou suas mágicas, são todos frutos de imaginação que, como num sonho ou pesadelo, mistura fantasia e realidade. Mas é possível reconhecer alguns dos personagens. Delaroche, o pintor, viu na fotografia uma ameaça à sobrevivência da pintura e dos pintores. Já Delacroix usou destemidamente a imagem fotográfica, lamentando apenas não ter sido possível fazê-lo antes. George Eastman trabalhava num banco e, mais tarde, deu o passo decisivo para transformar a fotografia numa grande indústria, com sua Kodak n.1. As palavras do escritor fascinado com o novo invento foram escritas por Edgar Allan Poe, em 1840. A "profecia" do professor tem menos de vinte anos: é uma observação de Marshall McLuhan em Understanding Media (Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem). Diante dos primeiros retratos, muitas pessoas tiveram uma reação confusa e temiam olhar nos olhos do retratado, com a viva sensação de estarem sendo observadas também. (Há muitas histórias de reações semelhantes diante dos primeiros aparelhos de televisão). De tempos em tempos, alguém pára diante dessas imagens mágicas e se questiona sobre seus enigmas, e não são somente os fotógrafos ou gente ligada à fotografia.
Em 1977 a ensaísta norte-americana Susan Sontag reavivou o debate sobre a essência da fotografia, seu papel no panorama cultural do homem, as atitudes das pessoas diante dela e o comportamento do fotógrafo, do modelo e do espectador. Em seu livro On Photography - sem uma única fotografia, mas cheio de opiniões ousadas - Sontag concorda que "nossa sensação irreprimível de que o processo fotográfico é algo mágico assenta-se em bases verdadeiras". O livro traz seis ensaios escritos em diferentes épocas. Foi traduzido para o português e lançado no Brasil, em 1981, com o titulo Ensaios sobre a Fotografia.
Em 1980 surge na França outro livro controverso - La chambre claire - onde Roland Bartes delineia sua visão da Fotografia. Barthes, escritor e professor de Lingüística, francês, logo no início se confessa perplexo diante da imagem fotográfica: "Queria a qualquer preço saber o que ela (a Fotografia) era 'em si', por que traço essencial ela se distinguia na comunidade de imagens" e conclui o parágrafo afirmando que não tinha ao menos certeza "que a Fotografia existisse, que possuísse um 'gênio' próprio". Essas imagens tão familiares, tão comuns em nossas vidas, podem nos desafiar com questões nem sempre fáceis de responder. Desde que surgiram, em meados do século dezenove, tem-se procurado aquele traço essencial a que se referiu Bartes, tem-se buscado o lugar da fotografia na comunidade das imagens. Se o grande mágico era falso, um outro - o verdadeiro - tinha um quê de mágico também.
"A nave da igreja vazia está iluminada pela luz do dia. Lentamente a luz se esvai e as velas se acendem. Vão surgindo fiéis diante dos bancos e os sons de um órgão marcam o início da missa da meia-noite. Depois, volta a luz natural e ao amanhecer não há mais fiéis, as velas se apagam e a nave fica de novo banhada de luz, com seus bancos vazios, como no início. É mágico!"
Espetáculos como este, relatado por uma testemunha entusiasmada, cativaram os parisienses do início do século dezenove. O mundo das imagens esboçava nascer, não havia ainda luz elétrica, nem cinema, nem televisão e, muito menos, os computadores e shows multimídia. O espetáculo, precursor dos shows audiovisuais, era apenas a fusão gradual de uma imagem em outra, pura mágica para aquelas platéias. O "truque", embora engenhoso, era muito simples. As cenas estavam pintada nos dois lados de uma tela de gaze, semitransparente. Na "Missa do Galo em St. Étienne-du-Mont", a igreja vazia foi pintada na frente da tela, com tintas transparentes. No verso, com tintas opacas, foi feita a multidão de fiéis. Quando a tela era iluminada pela frente, via-se apenas a igreja vazia. Fechava-se aos poucos a clarabóia, escurecendo a frente da tela, e ao mesmo tempo eram abertas janelas atrás, para "acender as velas" e encher a nave de fiéis.
Muitos outros quadros como este encantaram a Paris da década de 1820. Chamavam-se dioramas. Seu inventor, o pintor Louis Jacques Mandé Daguerre, contou dois de seus segredos ao governo francês em troca de uma pensão vitalícia de seis mil francos anuais. O governo pagava para dar ao mundo duas invenções: o diorama e a daguerreotipia, este, um processo pelo qual era possível gravar, de forma indelével, as imagens da câmara escura. Ou seja, a fotografia!
A invenção da fotografia é, de fato, a invenção do filme fotográfico. A câmara - a futura máquina fotográfica - já existia e há muito vinha sendo aperfeiçoada. Os artistas a empregavam como instrumento auxiliar do desenho, pelo menos desde o século dezessete. Da Vinci chamou-a de "olho artificial" e explicou os princípios teóricos de seu funcionamento. Suas origens, no entanto, vão até antes de Cristo, na Grécia. Em latim, era chamada de camara obscura.
Num mundo onde as imagens eram muito mais raras que em nossos dias, deve ter sido fascinante contemplar miniaturas da vida, projetadas por uma lente no fundo de uma caixa escura. Por que homens ocupados e respeitáveis perdiam seu tempo com essas pequeninas imagens, apenas reproduções da cena real ao alcance dos olhos? Por que o feitiço desses pedaços de vida, coloridos, se movimentando ao alcance de suas mãos? Que havia nas imagens da câmara escura de tão arrebatador?
A delicadeza de uma miniatura? Talvez. As miniaturas têm seu encanto próprio e nem só as crianças arregalam os olhos diante dos trenzinhos elétricos, por exemplo, que reproduzem em escala trilhos, desvios, vagões e tudo mais. Mas as imagens da câmara escura, além de permitirem "pegar o mundo nas mãos", reduziam-no a apenas duas dimensões. Todo o espaço que se estendia diante da lente estava representado sobre uma superfície plana, como na pintura, iludindo os olhos com a mais perfeita perspectiva. E era a perfeição dessa imagem, creio, que enfeitiçava o espectador. Perfeição trazida pela exatidão da perspectiva, das proporções, pela gradação precisa das cores e do claro-escuro e pela abundância de minúcias e riqueza de pormenores com que todos os detalhes se reproduziam.
Jamais um artista, nem mesmo o mais genial, pudera igualar a fidelidade absoluta das imagens da camara obscura. Vê-las era querer possuí-las, mas eram meras miragens fugidias, que os pintores tentavam imitar. Não era possível pegá-las nem podiam ser guardadas para serem depois contempladas. E essa própria efemeridade aguçava ainda mais o desejo de as possuir. Todo aquele que viu o "cineminha" no fundo da caixa escura deve ter sonhado com poder reter aquelas imagens, transformá-las num objeto palpável, como um quadro ou desenho. O homem sempre gostou de colecionar imagens, e aquelas eram as mais perfeitas que jamais vira.
A idéia de aprisionar aquelas imagens era, portanto, banal. Quase todos devem tê-la acariciado alguma vez. Muitos empreenderam a aventura de buscar uma solução; alguns chegaram a resultados mais ou menos satisfatórios. Isto explica por que a fotografia foi inventada por várias pessoas, quase ao mesmo tempo, em diferentes lugares, inclusive no Brasil, por outro francês: Hércules Florence.
A fotografia é a conseqüência inevitável do deslumbramento do homem frente às imagens da câmara escura. É o vestígio deixado no filme pela imagem que tanto o fascinou. Fascínio diante de uma perfeição que jamais vira numa imagem plana. Ainda hoje, o que torna a fotografia desconcertante é essa identidade de aparência com a realidade, sua capacidade de reproduzir a verdade visual (e apenas esta) com tamanha perfeição, numa imagem que se oferece desinibida à nossa volúpia visual, mas onde, também, o próximo instante jamais acontece...
Informação inodora não convence cachorro nenhum. O cão acredita em seu focinho, o homem em seus olhos: ver para crer. Quando diz "vi com estes olhos que a terra há de comer" ou "sou como S. Tome, só vendo", o homem dá a medida do crédito ilimitado que concede à informação visual. A incerteza quanto à natureza íntima da fotografia, quanto a seu lugar na comunidade das imagens, parece resultar da expectativa, criada por uma imagem tão verossímil, de que ela não seja apenas uma imagem. Experimentamos uma espécie de frustração diante de uma fotografia, ela provoca, quase sempre, o desejo de mais informação. Queremos saber sobre antes e depois, nos perguntamos sobre as pessoas, o lugar, o evento, a época. Buscamos a historinha que a imagem insinua e oculta, o texto que falta, falado ou escrito.
O dia 24 de agosto de 1981 trouxe novas dúvidas ao velho debate. Exatamente 142 anos e cinco dias depois da célebre sessão da Academia de Ciências de Paris, que tornou público o processo da daguerreotipia, o presidente de uma poderosa multinacional japonesa convocou a imprensa para fazer um anúncio solene. Prometia para o início de 1983 o lançamento comercial de um sistema fotográfico baseado em tecnologia radicalmente diferente da atual, obrigando a uma revisão profunda dos conceitos e hábitos atuais, inclusive da própria definição do verbete "Fotografia" nos dicionários. (ver posfácio)
O sistema Mavica - nome tirado das primeiras sílabas de Magnetic Video Camera - substitui o filme tradicional por um pequeno disco magnético, capaz de gravar 50 "fotos" e depois projetá-las em um vídeo comum de televisão ou, eventualmente, copiá-las em papel. Com exceção da copiadora, todo o sistema foi apresentado e demonstrado naquela ocasião. Um pequeno dispositivo possibilita a transmissão das imagens por telefone e o disco magnético pode ser apagado e reutilizado, como uma fita cassete comum.
Por enquanto, a qualidade das imagens - seu poder de resolução: capacidade de mostrar nitidamente detalhes finos - é o tendão de aquiles do sistema, mas a realidade de imagens eletrônicas na fotografia é só uma questão de tempo. Em 1982, falava-se muito da iminência de se esgotarem as reservas conhecidas de prata, elemento básico dos filmes e papéis atuais e usava-se isso como um argumento para aceitação das imagens digitais. Se por um lado o novo sistema comprometia a "perfeição" que sempre caracterizou a imagem fotográfica, desde os daguerreótipos, por outro, tornava a fotografia compatível com toda a tecnologia de processamento eletrônico de sinais e, em particular, com a forma dominante de processamento da imagem: o vídeo. Isso parece ter sido mais decisivo, mas voltemos à discussão daquela época.
As interrogações suscitadas pelas imagens magnéticas são de toda ordem, em todos os níveis. Como mudaria a atitude do fotógrafo com um "filme" que pode ser apagado? E os arquivos? Acabariam se transformando num imenso computador? E o tradicional álbum de retratos acabaria substituído por uma fita magnética? Sontag sublinha a importância da fotografia como objeto cuja posse nos deleita também. Uma fotografia no vídeo perde, de certa forma, seu caráter de eternidade - a imagem some e fica apenas um código indecifrável de sinais magnéticos.
Muitas outras perguntas, inclusive técnicas, poderiam ser colocadas, mas o ponto crucial era, e continua sendo, a qualidade da imagem. A imagem química do filme convencional faz jus às qualidades das objetivas. Os dois juntos - filme e objetiva -- garantem à fotografia, quase sempre, uma quantidade de informação muito maior que a necessária ou até mesmo desejável. Nossa idéia de fotografia está ligada tão intimamente a esta grande densidade de informação, que é lícito perguntar até que ponto a imagem estática pode suportar sua deterioração sem deixar de ser fotografia. Essa visão talvez explique a aparente tranqüilidade, então, de um alto funcionário de uma indústria de filmes, diante da novidade: "... não nos assusta. Se fosse o contrário, existissem apenas essas imagens e então lançássemos o filme convencional, o público estaria muito mais entusiasmado...".
O cinema e a televisão também surgem das imagens impecáveis de uma objetiva, mas a inevitável superposição de imagens, que imita o movimento destrói cada imagem isolada. Vemos todas as imagens num fluxo que imita a vida. O movimento da imagem é arrebatador e nos envolve como personagem/espectador. Numa cena estática, de um filme para televisão, havia ao fundo um imponente castelo e uma árvore secular no primeiro plano. Tudo parado como numa fotografia, exceto a brisa muito leve, que se podia perceber no topo do capinzal. Aquele movimento mínimo bastava para criar expectativa, parecia insinuar que alguma coisa iria acontecer.
A imagem imóvel da fotografia - fragmento retido do tempo - provoca outro tipo de envolvimento. Ela nos ilude com a sensação de poder interromper o fluxo do tempo, possibilita o prazer quase "voyeurístico" de devassar o passado numa imagem parada, disponível e eterna. Nos ilude com uma verossimilhança capaz de provocar a confusão da imagem com o objeto da fotografia. É impossível separar a fotografia do tema fotografado, mas ela não é o tema, é apenas o vestígio deixado por ele no momento mágico do clique.
Talvez você esteja mais acostumado a dizer máquina de retrato do que câmara fotográfica, ou então, tirar um retrato em vez de fotografar, mesmo que o tema seja uma paisagem, um prédio ou outra coisa qualquer, e não uma pessoa. Retrato, na acepção original é, necessariamente, a imagem de uma pessoa. Parece significativo que o uso tenha consagrado máquina de retrato e não máquina de paisagem ou algo similar, numa indicação clara do que sempre foi o tema mais importante da fotografia.
Antes da invenção da fotografia, a semelhança entre o retrato e o retratado dependia da perícia e sensibilidade do artista e se impunha, assim, como principal critério de julgamento: quanto mais parecido, melhor o retrato. Isso não impedia que alguns pintores, percebendo que a obra sobrevive aos homens, se aventurassem em busca do imponderável que transparece num rosto humano e transcende o próprio modelo. Conta-se que o genial Michelangelo, ao concluir o retrato de uma nobre senhora e ouvi-la sentenciar com desdém: "Não gosto. Não está parecido", retrucou: "Madame, daqui a quinhentos anos ninguém mais saberá quem é a senhora!".
A verdade ótica da fotografia redimia o retrato da imperícia ou genialidade dos artistas, surgia como árbitro infalível do aspecto de cada um. Árbitro implacável, às vezes, mas que devolvia ao retratado, junto com eventuais rugas ou imperfeições, sua identidade inconfundível.
A perfeição da imagem fotográfica, a exatidão com que a realidade era representada, é que surpreendia e fascinava àqueles que viam as novas imagens. Conscientes disso, ou não, eles as estavam comparando à pintura, ao desenho e à gravura, e jamais tinham visto tanta informação precisa reunida numa única imagem. Em fevereiro de 1839, é publicado um folheto relatando as experiências de Henry Fox Talbot - um inglês que também inventou a fotografia - com silhuetas de pequenos objetos, obtidas pela ação da luz sobre papel previamente sensibilizado. O título desta publicação lança o germe da dúvida sobre a natureza íntima da fotografia, sublinhando a independência da futura imagem fotográfica dos erros e imperfeições humanas: "Notas sobre a Arte do Desenho Fotogênico, ou Processo pelo qual os Objetos Naturais podem se Delinear a si mesmos sem Ajuda do Lápis do Artista". Ora, quando se pode prescindir do lápis do artista, quando os objetos se delineiam automaticamente, fica difícil duvidar da fidelidade da reprodução.
Esta característica da fotografia, aliada ao potencial de comunicação do rosto humano, distancia o retrato fotográfico de tudo que a mão do artista possa fazer. Na pintura, a identidade do retratado podia, ou não, ser o elemento predominante; na fotografia isto é inevitável, uma vez que cada rosto identifica um único indivíduo com a mímica facial que lhe é peculiar.
O semblante sereno de uma vaca, aquele ar "bovino" e imperturbável de quem está sempre filosofando, lhe é simplesmente inevitável pois, mesmo que pudesse querer, a vaca não poderia sorrir nem chorar. Sua máscara facial é rígida e inexpressiva, como a da maioria dos animais. O que se assemelha a uma paz interior, fruto de extrema sabedoria, é apenas fatalidade. Só os mamíferos superiores - em particular os primatas - são capazes de usar o rosto para manifestar emoções ou sentimentos, e esta linguagem visual atinge seu desenvolvimento máximo na espécie humana. O sofisticado código de sinais faciais, que deve ter-se aperfeiçoado muito antes da fala, é utilizado com tal automatismo e é tão universal que quase nunca sequer nos damos conta de sua existência!
Se você começar a observar quanto dependemos desta forma de comunicação, vai se surpreender por não ter atentado antes para sua importância e, com um pouco de imaginação, pode supor o que representou para nossos antepassados poder ler na face dos semelhantes o que eles não sabiam ainda dizer. Para um animal social, prestes a grunhir suas primeiras palavras, só pode ter sido uma enorme vantagem saber lidar melhor com o envio, recepção e interpretação dessas mensagens. Isto explicaria como, através de milênios, estes mecanismos evoluíram até o alto grau de sofisticação e eficiência atual.
O rosto, e não as impressões digitais, é nosso documento de identidade. Reconhecemos alguém, imediatamente, pela visão de seu rosto. Ele identifica num relance as pessoas, mesmo quando modificado pelo passar dos anos ou muito distorcido, como numa caricatura. Somos capazes, inclusive, de descobrir numa velha fotografia de "formatura de primário" alguém que só viemos a conhecer quando já adulto, ou vice-versa. Entre bilhões de pessoas, só os gêmeos univitelinos são realmente confundíveis!
Além de identificar determinada pessoa, precisa e rapidamente, o rosto informa, ao mesmo tempo, sobre seu ânimo, disposição ou estado de espírito. Captar o significado de uma expressão facial é tão fácil quanto é difícil evitá-la. Emoções e sentimentos se apossam de nossas feições inclusive à revelia, quando nos interessa escondê-los. Conseguir controlar emoções e dissimular sentimentos, sem se deixar trair pelo rosto, é considerado, em geral, uma qualidade desejável.
Os adjetivos e locuções com que costumamos descrever as expressões faciais demonstram a diversidade e sutileza deste modo de comunicação. Falamos de um olhar malicioso ou inocente; penetrante ou vago, perdido, distante; incisivo ou furtivo; sério ou de zombaria; apaixonado ou cheio de ódio; malévolo ou meigo, doce e bondoso; vivo e alegre ou triste e apagado; irônico ou ingênuo; um olhar pode mostrar cansaço, candura, súplica, medo, susto, surpresa, espanto, terror, volúpia, desejo, censura, ameaça, esperteza, estupidez ou ser apenas idiota, pelo menos. Tem-se um ar disso ou daquilo, como quem tem o rei na barriga ou comeu e não gostou. E ainda nos é dado torcer o nariz, sorrir amarelo, amarrar a cara, enrubescer de vergonha e por aí vai...
Bastam poucas linhas num desenho para definir uma expressão inequívoca; algumas manchas, quase abstratas, podem evocar um rosto conhecido e, eventualmente, definir um estado de espírito ou emoção. Somos capazes de "adivinhar", mesmo numa imagem medíocre, o significado de um olhar; além de perceber sua direção, sabemos se está focalizado aqui ou acolá, se analisa intensamente o que vê ou se, distraído, apenas "olha pra ontem". É impressionante a economia de recursos, o poder de síntese das expressões faciais. Elas são definidas por uns poucos sinais, fortes e persistentes, capazes de resistir a uma imagem imperfeita, como as que percebemos à distância ou num relance. Esta persistência fica evidente quando a imagem de um rosto, por qualquer razão, sofre uma gradativa destruição gráfica - pela utilização de retículas ou tramas, desfoque, aumento de contraste, que elimina detalhes nas partes claras e escuras, ou por meio do computador. O conteúdo da expressão fisionômica pode ainda ser percebido quando já desapareceram os detalhes que o evocam, como as linhas que delineiam os olhos e a boca, os cílios etc.
Em agosto de 1974, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, renuncia, sucumbindo ao chamado "escândalo de Watergate". Gerald Ford, há pouco designado vice-presidente, assume a Casa Branca. Por todo o mundo, nas embaixadas, consulados e repartições norte-americanas segue-se um ritual silencioso e significativo, registrado em Bonn, na embaixada, pela objetiva de Peter Mitchell: o retrato do novo presidente é içado às paredes, enquanto o de Nixon, carregado por um guarda circunspeto, é levado, provavelmente para os porões.
O fato intrigante na foto de Mitchell - vendida para todo o mundo e posteriormente premiada pela World Press Photo Foundation - é a rapidez com que os retratos de Ford estavam prontos e emoldurados para serem trocados, na Alemanha, logo após a renúncia. Em quase todos os países do mundo, cada troca de governantes é acompanhada pela substituição de milhares de retratos, numa indicação ubíqua e muda dos que detêm o poder.
A imagem de um rosto, seu poder carismático, tem ajudado líderes políticos e religiosos a disseminar seus dogmas e ideologias junto às multidões. Parece mais fácil acreditar numa pessoa que em idéias abstratas. A imagem identifica uma individualidade, alguém que personifica as idéias. Aparentemente os povos precisam dessas imagens, para "conhecer" aqueles que se propõem a conduzir seus destinos, a construir um mundo melhor, aqui ou além ou, simplesmente, a iludi-los. O rosto identifica uma única pessoa e evoca seu modo de ser, sua personalidade e, eventualmente, suas idéias. A História está cheia de rostos, inclusive a misteriosa "fotografia" de Cristo, em seu sudário. Às vezes, esses rostos assumem dimensões gigantescas, como os de Lenin, Mao-Tsé-Tung ou Khomeini, pairando sobre as cabeças de milhares de russos, chineses ou iranianos.
A força de comunicação de um rosto tem sido explorada para todos os fins. Durante a Primeira Guerra Mundial travou-se uma batalha nas pranchetas, onde se criavam pôsteres para induzir "voluntários" a oferecerem suas vidas nos campos de guerra. De um lado e de outro, predominou a imagem poderosa de um rosto com olhar incisivo, direto para o espectador.
Em outras culturas, o rosto encerra apenas um significado místico. O fotógrafo francês Edouard Boubat, trabalhando na África, aponta sua câmara para uma mulher. Ela percebe sua intenção e, rápida, esconde o rosto com os braços, sem se preocupar absolutamente com a nudez de seus seios. Boubat acha o gesto significativo. Para ele, aquela mulher "primitiva" parece saber que um seio nu é apenas uma forma redonda, muda e anônima, enquanto o rosto é o ser inteiro. Ela acredita que ao roubar a imagem de seu rosto é possível roubar, ao mesmo tempo, sua alma ou um pedaço de seu passado. Diz: inspirado em tabus religiosos e sexuais, nosso pudor cobriria antes os seios. O gesto da nativa lhe parece mais sábio.
Na velha tradição chinesa a imagem do rosto também é associada à essência do indivíduo, à sua alma. Nas cerimônias fúnebres, um retrato do morto - o mais fiel possível - devia acompanhar o enterro, junto ao caixão, para ser depois fixado ao túmulo, onde a alma encontraria um lugar de repouso.
De todos os motivos que se colocam diante de uma objetiva, o rosto humano parece ser o mais intrigante e é, seguramente, o mais fotografado. A fotografia se apossa de todo o poder de comunicação do rosto para criar este objeto paradoxal, inanimado e vivo ao mesmo tempo: o retrato fotográfico.
O homem só não foi o primeiro tema da fotografia por razões técnicas: os primeiros materiais sensíveis à luz - que quase não mereciam este nome - obrigavam a uma exposição na camara obscura extremamente longa, o que só possibilitava fotografar objetos inanimados. A primeira fotografia - feita no verão de 1827 - mostra o quintal da casa de Nicéphore Niépce, em Chalon-sur-Saône, França. Há nesta imagem um detalhe intrigante que pode passar despercebido ao observador apressado: a luz vem, simultaneamente, da direita e da esquerda, como se a cena estivesse iluminada por dois sóis. A explicação é simples: segundo o próprio Niépce, a imagem foi obtida com uma exposição de oito horas. Assim, o sol iluminou um lado da cena pela manhã e à tarde, o outro: ninguém poderia ficar imóvel tanto tempo!
Mesmo com os primeiros daguerreótipos - 12 anos mais tarde - era impraticável fotografar pessoas. Nas cenas de rua, elas desapareciam, como tudo mais que se movia, diluídas pelas longas exposições. As ruas estavam sempre desertas nas fotografias, feitas, contudo, nas horas de mais movimento - com sol forte.
O primeiro ser humano a aparecer numa fotografia estava absolutamente inconsciente de sua condição de "modelo", e mesmo para o fotógrafo sua imagem deve ter sido uma surpresa. Daguerre se prepara para fotografar, do alto, um bulevar parisiense. Um homem pára numa esquina e decide engraxar os sapatos, sem saber que será a primeira "vítima" da objetiva. O pé apoiado na caixa do engraxate "invisível" o mantém imóvel durante um tempo suficiente para que sua imagem seja registrada. No boulevard deserto ficou apenas sua silhueta; ninguém sabe seu nome ou quem seja; até mesmo a data desta imagem é incerta.
Era grande o desejo de fotografar gente e grande o desejo das pessoas de serem fotografadas. O ano de 1841 trouxe chapas mais sensíveis, objetivas mais luminosas e um processamento químico aprimorado, tornando possível o retrato. Inúmeros estúdios abriram suas portas a um público ávido e vaidoso, capaz de suportar qualquer tipo de sacrifício para ver sua imagem na pequena placa prateada dos daguerreótipos, que alguém chamou de espelho com memória. Os estúdios surgiam em cada esquina, ocupando, quase sempre, a parte mais alta dos prédios, para aproveitar plenamente a luz do sol. Mas enquanto a burguesia consumia deslumbrada sua própria imagem nas chapinhas metálicas, espíritos mais críticos questionavam as conseqüências visuais de uma imobilidade sustentada por vários minutos, com a ajuda de cadeiras especiais, dotadas de pinças para segurar a cabeça.
O poeta e escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson descreveu com finíssima ironia o suplício destes primeiros retratos: "Já foste daguerreotipado, oh homem imortal? E olhaste com todo o vigor para a objetiva da câmara, ou melhor, na direção do operador, para um cravo de bronze um pouco abaixo da lente, para dar à imagem todo proveito do brilho de teus olhos arregalados? E mantiveste, em teu zelo por não borrar a imagem, cada dedo em seu lugar com tal energia que tuas mãos se crisparam como para a luta ou por desespero, e, em tua decisão de manter imóvel o semblante, sentiste cada músculo tornar-se mais rígido, a cada instante; as sobrancelhas franzidas numa expressão diabólica e os olhos fixos com a fixidez do desmaio, da loucura ou da morte? E quando, enfim aliviado dos lúgubres deveres, viste a cortina delineada com perfeição, o sobretudo impecável, os punhos de fato cerrados para o combate e a forma do rosto, da cabeça? - mas, infelizmente, a expressão total escapou da face e, em vez de um homem, há apenas uma máscara? Seria possível, segurando com tamanha energia, não interromper o fluxo de um rio, ou de um pequeno regato, impedindo-o de fluir ?"
Os retratos dessa época que chegaram até nós insinuam, de fato, uma austeridade vitoriana. Mostram pessoas compenetradas, com fisionomias rígidas, em atitudes de profunda meditação ou com ares de graves preocupações. Porém é mais provável que os modelos meditassem apenas sobre o desconforto da pose e que suas preocupações não fossem além do esforço e concentração na imobilidade. Para tentar um resultado mais ameno era preciso sorrir e continuar "sorrindo", durante uns cinco ou dez minutos, deixando patentes na rigidez dos músculos que sustentam o sorriso as limitações da técnica.
É inevitável que os recursos e limitações da técnica deixem suas marcas na obra, independente da vontade dos artistas. Nestes primeiros retratos elas são facilmente visíveis. O retrato fotográfico tinha sido conquistado apenas em parte. Faltava um elemento decisivo: um tempo de exposição tão curto, que por si só paralisasse os movimentos, prescindindo, para captar "o breve instante", do prolongamento artificial da pose, numa imitação absurda da vida. Faltava o instantâneo.
Passaram-se duas décadas até a conquista definitiva do instantâneo. Pouco a pouco as ruas, pontes, praças e bulevares se encheram de gente nas fotografias. Hoje, meios mecânicos ou eletrônicos permitem registrar eventos com um tempo de exposição (tempo durante o qual o filme fica exposto à luz) de até um milionésimo de segundo, revelando aspectos surpreendentes do movimento, que o olho não pode perceber.
Desvendar as etapas do movimento era fascinante. Começou-se a estudar como andam os homens, como voam os pássaros, ou como galopam os cavalos. Começou-se a descobrir que muitas coisas não eram exatamente como se pensava. Em 1873, um rico e extravagante ex-governador da Califórnia, Leland Standford, apostou 25 mil dólares com um amigo sobre o galopar dos cavalos. Sustentava que havia um momento em que as quatro patas ficam, ao mesmo tempo, fora do chão. Na pintura, era comum representar o galope mostrando o animal com as patas dianteiras esticadas para frente e as traseiras para trás, todas no ar. Standford contratou o fotógrafo Eadweard Muybridge para decidir a aposta. Após várias tentativas e frustrações Muybridge obteve a prova desejada. Numa seqüência de imagens, obtida com 12 câmaras colocadas lado a lado e disparadas por um fio rompido pelo próprio cavalo, ficava patente o momento em que as quatro patas, simultaneamente, não tocavam o solo. Para surpresa geral, este momento só existia quando as patas estavam dobradas sob o corpo do animal; em nenhuma imagem aparecia a posição consagrada pela pintura. As fotografias pareciam absurdas. Standford ganha a aposta, Muybridge dedica-se a estudar o movimento de homens e animais, com os aparelhos que desenvolvera e nós voltamos a nossos retratos.
O instantâneo conquistava, definitivamente, um dos atributos mais característicos da fotografia: o registro do aspecto das coisas numa fração ínfima de tempo e sua "eternização" numa imagem estática. Esta conquista libertava os modelos do encargo penoso de "congelar" a ação com sua própria imobilidade e trazia novas possibilidades e muitas surpresas às imagens de gente. Veio a descoberta de que também nossa imagem, surpreendida no freio de um movimento, nem sempre correspondia ao que se imaginava, como no caso do galope. O fotógrafo tinha diante de si um novo desafio: a escolha do momento para acionar o obturador, fosse para captar a expressão mais favorável do retratado ou, propositadamente, para obter uma imagem comprometedora. O instantâneo trazia uma nova ameaça: qualquer um poderia ser surpreendido fazendo qualquer coisa e ter sua imagem registrada sem que fosse preciso posar ou, sequer, saber da existência do fotógrafo.
Parecia óbvio que as exposições curtas garantissem ao retratado um aspecto natural, ao tornar obsoletos os retratos posados, meticulosamente arrumados e com os longos tempos de antes, mas os problemas estavam apenas começando.
A reação de uma pessoa diante da objetiva - isto é: diante do fato de saber que está sendo fotografada - transparece no retrato e este relacionamento, que se costuma dizer do modelo com a câmara, mas que envolve também o fotógrafo e os eventuais espectadores futuros da fotografia, é muito rico para ser apenas mencionado.
Há perguntas para as quais só tenho respostas superficiais: o que é fotogenia? O que faz com que uma pessoa seja fotogênica e outra não? Por que tem gente que sempre "sai" bem e gente que nunca "sai" bem em fotografias?
Pressinto aí um campo fértil, que se estende além dos limites da fotografia, ao qual se tem dado muito pouca atenção. Para a maioria das pessoas a máquina de retrato é perturbadora. Perturbadora porque determina dois territórios, da caça e do caçador; porque, sem a privacidade dos espelhos, nos coloca diante de nossa própria imagem.
Como você se sentiria se fosse surpreendido fazendo caretas no espelho? Ficaria encabulado, sem graça, envergonhado? Por quê?
Afinal de contas, fazer caretas no espelho não faz mal a ninguém. Provavelmente o careteiro procura apenas se conhecer melhor; quer saber como funciona seu rosto, como é seu aspecto quando não está se olhando no espelho. É muito difícil - quase impossível - nos vermos como vemos outras pessoas, ou como as outras pessoas nos vêem. Fora as implicações de sermos, ao mesmo tempo, observados e observadores, estamos sempre no pior ponto de vista, sempre perto demais, para olhar nosso próprio corpo. Do rosto, fora do espelho, não conseguimos mais que uma imagem desfocada da ponta do nariz, dos lábios quando se "faz bico" e nada mais. Os espelhos - de forma mais imediata e acessível que o cinema, a televisão ou a fotografia - fazem existir nossa imagem de longe, mostram nossa figura de frente, de costas ou de perfil.
Fazer caretas no espelho é como ensaiar algumas expressões que são nossas, mas que quase nunca podemos ver; é buscar um feedback sobre um assunto que nos diz respeito, mas que os outros conhecem melhor do que nós. Nossa fisionomia muda - e muito! - conforme a ocasião: depende de nosso humor, de estarmos cansados ou não, de todos os projetos, sonhos e preocupações que povoam nossa cabeça. Usamos diferentes máscaras para cada situação e temos, até mesmo, uma preferida para usar no espelho. Nada mais natural, portanto, que pesquisar e treinar na frente do espelho, como atores em busca de um controle maior da mímica facial. Por que, então, ficar embaraçado quando se é surpreendido experimentando caretas no espelho?
Ninguém diz, mas ficar a se estudar no espelho, fazendo caretas ou não, tem gosto de proibição, de coisa que só se faz escondido. É mais ou menos como andar por aí falando sozinho: quem quiser aprender a lidar com sua voz, que vá para uma escola de canto, oratória ou dicção. Lá, pode berrar, gemer, grunhir, gritar, discursar com a boca cheia de bolinhas ou com um pauzinho preso entre os dentes. Tudo normal, "tá na escola é pra aprender". Mas ai dele se, ao andar pelas ruas, ousar testar o som de algumas sílabas! Aí, até mesmo um leve suspiro pode levantar suspeitas.
Muita gente só consegue soltar sua voz quando se tranca no último reduto da liberdade individual, na cidadela da privacidade: o banheiro. Lá procuramos sossego para uma leitura tranqüila, ou a acústica privilegiada do boxe do chuveiro para ensaiar uma ária favorita, ou a certeza de não estar sendo observado para examinar melhor a própria aparência. Talvez por isto os banheiros tenham uma importância crescente na arquitetura doméstica, talvez por isso seu número e sofisticação sejam uma medida segura de ostentação. A evolução foi fantástica: de um minúsculo e úmido alpendre, afastado por sua imundície intrínseca, transformou-se num ambiente aconchegante e requintado que se abre, luxuoso, para o quarto principal. Algumas "suítes do casal" têm mesmo dois banheiros, completíssimos; um para ele, outro para ela...
Mas isso é uma outra história. Se você alguma vez na vida já pegou uma máquina e se propôs tirar o retrato de alguém, deve saber perfeitamente que a situação não é cômoda nem de um lado nem do outro, nem para o modelo nem para o fotógrafo. Posar para fotografias ou fotografar pessoas talvez não mereça muito da nossa atenção. O assunto, em si, é banal, mas a reação das pessoas envolvidas, o relacionamento do retratado com sua imagem, do fotógrafo com o modelo, tudo isso parece muito interessante. Quase ninguém se pergunta por que não fica à vontade diante da objetiva. Pouquíssimos se propõem enfrentar o desafio. A reação mais comum, diante dos primeiros resultados desfavoráveis, é se auto-rotular "não fotogênico" e passar a evitar, daí por diante, a incômoda posição de modelo, por mais que ela seja atraente.
Esta reação diante da câmara tem algo a ver com a da pessoa surpreendida ao fazer caretas no espelho. Nos dois casos há uma ameaça à intimidade da relação do indivíduo com sua própria imagem. Relação que nem sempre é cristalina e, por isso mesmo, se torna intrigante. Capaz de fazer aflorar conflitos e sensações que reprimimos a maior parte do tempo. Posar para uma fotografia é se expor, em todos os sentidos; expor-se, também, às tentações e riscos de uma exibição; é desvendar sua imagem a uma platéia imponderável, através de um documento que - supõe-se - não sabe mentir. As luzes da cena atraem e atemorizam ao mesmo tempo.
Não é todo dia que um grupo de senhoras - todas respeitabilíssimas, do mais fino trato e em confortável situação financeira - resolve trancar-se num aposento, tirar até a última peça de roupa, para se fotografarem assim, peladinhas, umas às outras. E, no entanto, foi mais ou menos o que sucedeu com uma turma da tarde que, por um acaso, ficara apenas com alunas. Foi no começo da década de setenta, na enfoco, escola de fotografia.
Na porta do estúdio fizeram a proposta: queriam ficar a sós e trancadas. Depois se arrependeram: algumas nunca mais voltaram! Outras, só algum tempo depois. As fotos, obviamente, foram censuradas. O episódio se encerrou deixando no ar muitas interrogações. Que impulsos teriam levado esta turma a uma atitude tão inesperada? Um arroubo artístico que via no nu um tema irresistível? Mais um pouco e teriam aulas com modelo nu. Queriam testar uma audácia, que não estavam certas de ter? Ou cederam ao sabor irresistível das coisas proibidas com o tempero iconoclasta do desafio aos tabus? E qual seria o papel mais estimulante: o de fotógrafa ou modelo?
Posar para fotografia (e assumir plenamente o papel de modelo) encerra um pouco do desafio de um strip-tease em público. Somos compelidos a assumir, sem a privacidade do espelho de casa, um papel que muitas vezes não tivemos coragem, sequer, de ensaiar.
OLHA O PASSARINHO
Muita gente alega que só sai bem quando não sabe que está sendo fotografada e faz, assim, um auto-elogio e uma confissão: gostam de suas imagens "ao natural" e confessam-se incapazes de enfrentar a câmara. Claro: pode-se surpreender uma
pessoa, sorrateiramente, sem que ela perceba que está sendo fotografada, e obter, assim, o que costumamos chamar de instantâneo, na falta de um termo melhor. (Em inglês, há uma expressão mais precisa para as imagens assim obtidas: candid shot que, traduzida ao pé da letra, seria foto imparcial - não posada nem ensaiada). São imagens que têm mais naturalidade, tão espontâneas como as cenas espiadas pelo buraco da fechadura, quando o observado não tem a menor idéia da existência do observador. Por outro lado, violam a intimidade e privacidade do fotografado - Kissinger jamais teria enfiado o dedo no nariz, no plenário das Nações Unidas, se soubesse que estava sob a mira de uma poderosa teleobjetiva. Nas "candids" não existe interação entre o modelo e o fotógrafo. Não existe a relação que nos interessa aqui.
Quando a gente sabe que está sendo fotografado, exatamente esta consciência modifica nosso comportamento. É impossível ignorar a presença da câmara. Ela determina um espaço cênico, que convida a desempenhar um papel, nem que seja o papel de imitar a si mesmo. Mas trata-se de um palco imaginário e uma platéia desconhecida, apenas potencial. No cinema, no teatro ou na televisão o jogo é explícito: quem entra em cena sabe que está se expondo a um público, sabe-se sujeito a vaias e aplausos. A existência dos bastidores, de uma ação que se desenrola no tempo, tudo prepara para a transição da banalidade do cotidiano para um mundo mágico de fantasia. A lâmpada vermelha na porta do estúdio, ou na frente da câmara, anuncia que uma outra realidade "está no ar". No cinema, precedendo o golpe seco da claquete, três comandos ritualísticos transportam os atores a seus personagens: "Luzes!... Câmara!... Ação!".
Na fotografia não existe este "correr de cortinas" que define o início do ato. Na melhor das hipóteses tem-se um "Olha o passarinho!", técnica que pode ter funcionado para criar um olhar atento, enquanto foi novidade. Privada de dimensão no tempo, a imagem fotográfica não é espetáculo, embora muitas vezes seja preciso montar um espetáculo para obter, numa fração de segundo, a imagem desejada. Na ausência do ritual nem sempre fica claro que é preciso representar. Pode parecer ridículo encenar um personagem para aproveitar apenas um instante tão fugaz. Esta "consciência do ridículo de uma situação" pode fazer o modelo sentir-se um pouco como a centopéia.
Ia a formiga por seu caminho, quando topou com um bicho infernal: tinha centenas de pernas e, mesmo assim, locomovia-se garbosamente com mais perfeição que os pelotões do exército de sua majestade. Cada perna movia-se no exato momento e, dado seu passo, era a vez da seguinte e assim por diante por todo aquele mar de pernas. Tudo impecável, como se uma onda percorresse de ponta a ponta o bichinho.
Impressionadíssima, a formiga perguntou: "Diga lá, centopéia, como você faz para saber que perna está na hora de mexer? Como é possível não errar, tendo tantas pernas para coordenar?"- ao que a centopéia (provavelmente um miriápode) respondeu: "Ué! Nunca tinha pensado nisso...". Consta que morreu ali mesmo, pois nunca mais conseguiu andar.
Quando a gente precisa posar para uma fotografia se sente um pouco como a centopéia: a consciência do próprio corpo atrapalha o desempenho. Não sabemos o que fazer dos braços ou onde enfiar as mãos. Ficar em pé, parado, parece uma tarefa complicadíssima, assim como ter um ar inteligente ou um sorriso enigmático. Sabemos que é impossível somar em uma única imagem toda a complexidade de um ser. Sabemos que a câmara pode ser cruel ao eternizar uma expressão transitória. A todas estas preocupações soma-se a de que elas não transpareçam na fotografia...
No cinema ou na televisão, nosso desempenho não é julgado por uma única imagem. Podemos "construir nosso personagem" ao longo do tempo, com som e movimento, tornando mais natural sua relação com o espectador. Na fotografia, todo o ser fica resumido a um instante, numa informação parcial em alta definição, isto é: extremamente minuciosa naquilo que informa, mas que deixa de lado inúmeras outras informações que caracterizam o indivíduo "ao vivo".
A preocupação do retratado com a própria imagem determina, em grande parte, sua reação. Roland Barthes descreve o que passava por sua cabeça ao perceber que era alvo da atenção de um fotógrafo ou quando precisava posar para uma fotografia: "... quando me sinto observado pela objetiva, tudo se transforma: passo a 'posar', me fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me a priori em imagem..., não sei como agir, de dentro, sobre meu aspecto. Decido deixar pairar em meus olhos e lábios um sorriso que pretendo 'indefinido', capaz de traduzir, além das qualidades de minha natureza, a consciência divertida que tenho de todo o cerimonial fotográfico: eu aceito o jogo social, eu peso, eu o sei, eu quero que você o saiba, mas este suplemento de mensagem não deve alterar em nada a essência preciosa de minha individualidade: o que sou além de qualquer efígie".
"São poucos, é claro, os que na iminência de serem fotografados se vêem em meio a essas cogitações. Barthes, sem dúvida, é um caso peculiar, mas até que ponto o nível cultural, a consciência e zelo com a própria imagem determinam um comportamento diante da câmara e, conseqüentemente, um resultado?".
Maureen Bisilliat - uma excelente fotógrafa brasileira - filmou e fotografou durante muito tempo as tribos indígenas do Xingu. Lá, constatou uma nítida diferença de atitudes entre homens e mulheres diante da câmara. Ela conta que as mulheres se comportam como crianças: "brincam o tempo todo, riem muito - porém sem excitação -, provocam você, procuram tocá-lo com as mãos, coisas assim. Os homens, ao contrário, são atores por índole, agem como se estivessem em cena; compreendem que estão representando e procuram colaborar". Ora, se existe, no Xingu, uma diferença de comportamento tão nítida, que se pode relacionar a dois subgrupos da sociedade local (homens e mulheres), não seria absurdo imaginar outros casos onde a atitude diante da câmara se pudesse caracterizara como típica de determinado grupo. Há indícios que parecem confirmar a hipótese, mas, por enquanto, são apenas suposições.
"Escravo do espelho meu..."
"... vinde do espaço profundo e dizei se existe no mundo mulher mais bela que eu !" Branca de Neve ou Afrodite - tanto faz. O pomo de ouro da discórdia dizia apenas: "À mais bela"... e pela beleza se mata, se faz a guerra. Beleza efêmera, vã, ilusória - diz a própria palavra vaidade. Que importa? - o homem é efêmero também.
Por sua própria natureza, a fotografia estabelece, antes de tudo, um julgamento sobre a beleza de cada um. Quando resta apenas o aspecto visual de uma pessoa, a única certeza que podemos ter é sobre sua aparência. A informação contida numa fotografia pode ser extremamente rica (minuciosa), mas é totalmente parcial, e nem mesmo quanto à aparência a imagem estática é sempre infalível. A beleza de um ser não se resume a seu aspecto exterior e nem sempre a fotografia transcende esta superfície. Se a perfeição das formas e traços fisionômicos fossem os únicos critérios válidos de julgamento, deveríamos buscar nos concursos de "Miss Universo" o que de mais representativo existe de humanidade.
Quando a aparência é particularmente significativa - nos casos de uma beleza incomum ou do extremo oposto - a informação contida numa fotografia pode parecer suficiente: a mensagem mais evidente encontra seu meio mais adequado. Fora destes casos, um retrato diz pouco sobre o retratado, a rigor, sugere mais do que diz. Quando vemos alguém numa fotografia, é quase instintivo procurar o complemento da informação num texto legenda. Se conhecermos o retratado, esta informação complementar já existe; diante de um rosto desconhecido queremos saber mais sobre aquela pessoa: de quem se trata? O que faz ou fazia? O que pensa? - e assim por diante.
É tão forte a presença destas interrogações, que se tornou comum usar o cenário, os trajes e complementos para tentar respondê-las, pelo menos em parte. Já em 1857 Robert Howlett colocava um importante engenheiro naval, lsambard K. Brunel, diante dos gigantescos elos da corrente da âncora de um vapor de sua construção, para fazer seu retrato. O recurso foi e é tão usado e abusado, que é possível encontrar todo tipo de resultado: da grandiosidade de uma imagem impecável e plasticamente bem resolvida, como o retrato de Stravinsky, feito em 1.946 por Arnold Newman - onde o compositor aparece integrado à silhueta de um piano de cauda aberto, até as imagens capengas e literais, que não conseguem ser mais que uma insinuação mal feita do que caberia às palavras dizer.
A ânsia por esta informação, que não está contida na imagem, faz com que a informação existente se torne redundante, que assuma uma importância fictícia. Como a vida está suspensa, na fotografia, resta a ação de nosso olhar, que percorre e analisa a imagem reparando pormenores insignificantes, computando detalhes que jamais prenderiam nossa atenção "ao vivo", emprestando-lhes significados que, muitas vezes, inexistem no contexto real. É o fiapo de cabelo em desalinho, o brilho de uma pérola num colar, as dobras do pano que se tornam voluptuosas, uma mancha qualquer que se percebe no fundo - tudo, e apenas, o que existe na imagem, privado do resto, que a imagem oculta.
Um retrato pode ser examinado minuciosamente, com uma insistência com que não ousaríamos olhar o próprio retratado. É como estar do outro lado do espelho, observando sem o risco de ser observado também - um monólogo, sem as implicações de outro olhar para dialogar. Esta condição do espectador torna a observação da vida através da fotografia totalmente diversa da observação direta da própria vida.
Saber que um retrato pode nos expor assim, talvez dificulte as coisas na hora de posar, mas a dificuldade maior não está aí. Qualquer pessoa quer ficar o mais bonita possível num retrato, é natural. Mas querer ficar bonito (ou bonita) é atestar sua vaidade e isto tem gosto de proibição e risco de pecado.
As religiões separam o homem em corpo e alma e defendem o sacrifício daquele para a salvação desta numa vida futura. Cultivar o corpo e todos os prazeres que ele pode proporcionar é ecumenicamente desaconselhado como algo fútil ou, até mesmo, perigoso. Entre as futilidades que podem levar uma alma à perdição está um pecado capital: a vaidade. Por conveniência, sempre se tolerou um certo grau de vaidade nas mulheres - fraqueza compreensível em seres mais frágeis, diria o "sexo forte", que até ontem dava todas as cartas, a defender seus interesses. No homem, seria totalmente inadmissível o menor traço de vaidade, o que provocaria, de imediato, sérias dúvidas sobre a própria masculinidade do infrator.
Muitos maridos, noivos e namorados, temerosos de verem suas esposas, noivas e namoradas exporem atributos irresistíveis a ávidos olhares masculinos, engrossavam o coro dos que vêem na vaidade um grande perigo. Invocavam moral, decoro, família, recato, bons costumes e diriam, até mesmo que, se suas mulheres fossem extremamente belas, deveriam procurar ocultar tal beleza, dissimulá-la, para que os demônios não pudessem usá-las para provocar tentações nos mais fracos. Vaidade era coisa de meretriz; exibir a mercadoria, sinal de querer vendê-la.
Se de um lado havia estas pressões, de outro, dois apelos poderosíssimos criavam a dicotomia; os poderosos estímulos biológicos que levam à busca de um companheiro (ou companheira) e toda a mitologia da beleza pregada pelos meios de comunicação. Como não se preocupar com a aparência se ela é a primeira mensagem, e inevitável, na árdua busca de uma alma irmã ou, simplesmente, um parceiro sexual? Como não cuidar da aparência vivendo numa sociedade que supervaloriza o aspecto de tudo, em todos os níveis? Como ignorar os mitos de uma beleza impecável, recriados a cada dia e transformando vídeos, revistas e cartazes em altares onde desfilam esses deuses com sua perfeição vazia?
Desafiando as ameaças de um castigo eterno, a indústria da beleza - que inclui desde simples sabonetes, passando por toda a parafernália dos cosméticos e mistificações da moda, até os eventuais milagres de uma cirurgia plástica - alimenta com bilhões de dólares a cada ano um convite ao pecado. Fabricando sonhos de uma beleza divina, vende junto com seus produtos a ilusão da formosura ao alcance de todos. Mas para a grande maioria estes sonhos são inatingíveis, irreais. O padrão escolhido, cuidadosamente fabricado, representa apenas um ideal, do qual cada um procura se aproximar na medida de suas possibilidades.
Para muitos animais a beleza traz uma vantagem palpável, e isso a que hoje chamamos vaidade pode ter evoluído a partir do que Darwin chamou de seleção sexual. Na Origem das Espécies ele já assinalava que "... certos machos têm tido, em sucessivas gerações, algumas ligeiras vantagens sobre outros machos, quer por suas armas, quer por seus meios de defesa, quer por seu charme..." (grifo meu). Ora, os machos mais charmosos (mais belos, melhores cantores ou dançarinos etc.) teriam a preferência das fêmeas, podendo deixar, assim, uma prole mais numerosa, que, herdando os mesmos atrativos, estaria mais bem preparada para novas vitórias sexuais, e assim sucessivamente. Enquanto a seleção natural na luta pela sobrevivência oferecia como prêmio a própria vida, a seleção sexual premiava com o sucesso na reprodução. Em ambos os casos, as características dos bem-sucedidos tenderiam a se tornar mais comuns, de geração para geração.
Se a beleza pode ser uma vantagem biológica, num critério natural de seleção entre os animais, a vaidade - entendida apenas como a preocupação e o cuidado com a própria aparência - poderia ser a manifestação racional, no homem, deste atributo. Seria então uma característica natural e não um pecado ou uma doença (o narcisismo é um desequilíbrio psicológico). Como costuma ser comum, o mais difícil é encontrar o justo ponto de equilíbrio.
Paradoxalmente o homem se impõe regras que não deseja, em absoluto, cumprir. Entre os apelos conflitantes de uma eventual vida futura, eterna ou não, e o sucesso social e sexual na vida presente e indiscutível, procura ajeitar as coisas da melhor maneira possível. De público, condena a vaidade, representando-se superior a um assunto tão banal; na frente do espelho, às escondidas, se permite uns leves pecados. Afinal, apesar de todas as ameaças de penas futuras, é gratificante (e, às vezes, estimulante) se sentir alvo de admiração, principalmente do sexo oposto. Afinal, não são só os animais inferiores que consideram a aparência na escolha do companheiro ou companheira.
Todo mundo nu
As duas últimas décadas se caracterizaram, entre outras coisas, por uma vertiginosa revisão dos valores estabelecidos. Conceitos que por séculos foram tidos como certos e bons vêm caindo com mais facilidade do que se poderia supor.
O padrão de vida que foi modelo para o mundo depois da Segunda Guerra Mundial - o American way of life - de repente se mostrou caduco e provava não ser caminho para a felicidade. O mundo ficava menor e do oriente sopravam ventos com uma alternativa ao cientificismo e tecnocracia que levaram a Hiroshima e Nagasaki. Uma pequena "lua artificial" girava ao redor da terra fazendo "bip-bip". Os beatniks contrapunham ao patriotismo o indivíduo. O astronauta disse que a Terra era bonita e azul. McLuhan profetizou a aldeia global. Surgiu a consciência de que o planeta, finito, vinha sendo destruído metodicamente. A miséria, a fome e as guerras em locais remotos chegavam via satélite pelas portas da televisão. Os mesmos vídeos mostraram os "grandes homens" que comandavam o espetáculo, como seres pequeninos, falíveis, apenas humanos. Os Beatles fizeram o mundo inteiro entoar uma mesma canção. Crescia a riqueza dos ricos e o número de pobres. A pílula garantiu à mulher o gozo do sexo sem o medo da prole. Os hippies repetiam: "paz e amor". O mundo inteiro, de poltrona, viu uma bota deixar seu rastro na Lua. Os homossexuais clamaram por um lugar ao sol: o sexo já podia ser falado, visto e vivido. A mulher descobriu séculos de discriminação. Havia uma sensação de urgência, uma consciência da efemeridade e o mainá repetia: "aqui e agora".
A revolução conceitual tomou o corpo também. Ele deixou de ser objeto de pecado e começou a ser redescoberto como um bem não renovável, como instrumento de prazer e essência do indivíduo. Diante da ameaça de destruição total, o indivíduo assumia uma importância que nunca tivera antes. Era tempo de explorar e cultivar o corpo, antes que os anos o consumissem em vão. Urgia levá-lo para junto da natureza, exercitá-lo, embelezá-lo, queimá-lo ao sol e exibi-lo. Era preciso descobrir qualidades em suas imperfeições e usá-lo o mais possível.
Aquela beleza, imposta por interesses comerciais, também devia ser questionada. O que é uma pessoa bonita? Aquela que tem o rosto, o nariz, os seios, o corpo, tudo perfeitinho? A imagem vendida pela mídia oficial e tão diferente da maioria? O conceito de beleza começava a ser questionado.
Em 1981 recebi uma curiosa proposta de trabalho: fotografar uma série de pessoas despidas para oferecer uma alternativa à "beleza playboy". Seria para um número especial sobre o corpo, de um "jornal nanico" que, infelizmente, acabou antes do tal número. O editor me colocou a coisa mais ou menos assim: "Serão pessoas comuns, portanto, imperfeitas. Nada de homens atléticos, de cintura musculosa e bíceps esculturais, nem mulheres de peitinho duro, com os biquinhos perfeitos empinados pra frente, com coxas perfeitas, bunda perfeita, tudo perfeito e um rostinho angelical. Vamos mostrar mulheres com os seios um pouco caídos, porque quase todo mundo é assim; homens com a barriga proeminente, ou meio gorduchos ou magros demais, porque a maioria é assim".
Não se trata de uma guerra contra as pessoas mais lindas, apenas de colocar a beleza física em seu devido lugar. Começa a louvação de uma outra beleza, que vem de dentro, que mostra a pessoa que está à vontade com as "imperfeições" de seu corpo ou com a "beleza relativa" de seu rosto. É claro que teríamos uma humanidade bem diferente, se a cada um fosse dado escolher seu aspecto, mas um físico de divindade grega não é imprescindível para o indivíduo ser belo. Twigg e Veruschka desafiaram o padrão clássico das formas femininas. Não é com uma fita métrica que se vai descobrir a nova Vênus.
Houve um tempo em que era costume escolher a melhor roupa para tirar retrato. Nossos netos não verão nossas imagens como as que nos deixaram nossos avós: todo mundo perfilado, bem arrumadinho, de banho tomado e cabelo penteado, num retrato bem cuidado feito por profissional. O nó da gravata, o lenço no bolso do paletó ou o cravo na lapela, as rendas mais finas, as melhores jóias, até o cordão de ouro com a medalhinha, tudo exigia cuidados num ritual que, talvez, emprestasse às pessoas o ar circunspeto dos "álbuns de família". Hoje, se alguém escolhe uma roupa especial para fotografar, talvez pegue aquela mais velha e surrada, um saudável indício de uma atitude diante da vida. Mas, o mais comum é o retrato ocasional, feito pelo parente ou amigo, sem nenhum ritual. Sinal dos tempos.
Dentre tudo que podemos fazer, até posar para uma fotografia pode ser uma boa oportunidade de lidar com toda esta confusão.
Quem circulava pelas ruas de Nova Iorque, no começo da década de 70, talvez tenha presenciado uma cena incomum: um respeitável senhor, já beirando os sessenta anos, trajado com muito bom gosto, parar, abaixar-se no meio do burburinho, para catar no chão, com o cuidado de quem pega uma rosa prestes a ruir, uma ponta de cigarro fumado, imunda, uma guimba nojenta. Depois, de posse do "troféu", desaparecia outra vez em meio à multidão.
A cena certamente se repetiu inúmeras vezes, e quem por acaso a presenciou saiba que assistia ao trabalho de um dos maiores fotógrafos de nossos tempos: Irving Penn. As pontas abandonadas, com marcas de dentes e batom, amassadas, pisadas, empoeiradas, semidestruídas, eram levadas com cuidado para o estúdio, para que não se perdesse nem o eventual fio de cabelo nem os grãos de poeira a elas grudados. Lá, eram fotografadas com a mesma mestria que celebrizou as fotografias de Penn de moda ou publicidade. As imagens muito ampliadas, já no imenso negativo, mostravam com irritante minúcia cada farelinho daquela porcaria, sem esquecer, junto ao filtro, os símbolos e marcas dos fabricantes. Perfeição absoluta: é possível contar cada grão de pó. Imagens exuberantes, ricas, belíssimas!
Em 1975, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque expôs 14 dessas imagens, em enormes ampliações sobre um papel especial, fabricado pelo próprio artista com sais de platina em vez dos sais de prata usuais (este tipo de papel chegou a ter alguma popularidade no final do século dezenove, depois, foi totalmente esquecido). A exposição mereceu todos os adjetivos, tanto para exaltá-la como para manifestar o mais intenso repúdio.
Contam que Penn é inimigo figadal do tabagismo e que sua proposta foi uma reação às requintadas imagens produzidas para vender cigarros. Penn ter-se-ia proposto mostrar o epílogo das cenas idílicas da propaganda: o abandono da guimba.
Pouco importa. As imagens transcendiam, por sua extrema beleza, um eventual conteúdo teórico e, seguramente, entre aqueles que pagaram 3.500 dólares por uma cópia havia fumantes, que continuaram a produzir guimbas enquanto se deleitavam na contemplação de outra, tão cara. A exposição pode ter sido um fracasso como publicidade contra o tabaco, mas mostrou com incontestável clareza que a imagem fotográfica pertence a uma realidade diversa daquela que a gera.
A realidade nua e crua - viva, tridimensional e cambiante - é apenas matéria bruta, apenas uma das matérias-primas, na complicada alquimia da imagem. Não é indispensável partir do belo para chegar ao belo. A fotografia tem sido uma prova contundente desta verdade.
A melhor imagem, aquela que transmite com mais eficiência uma idéia, uma emoção ou o conteúdo de um tema, não é, necessariamente, a que contém o máximo de informação verbalizável. Nem sempre é aquela que reproduz com mais fidelidade o assunto ou mostra com muita clareza o maior número possível de aspectos. Muitas vezes o que torna forte uma imagem, que a faz pujante ou arrebatadora, são elementos independentes do tema, contidos na forma de tratar a imagem.
Pode existir uma distância infinita entre a realidade palpável à frente da objetiva e a realidade criada ou evocada na fotografia. Tanto é possível chegar ao belo partindo do banal, feio ou, até mesmo, repugnante, como a beleza grandiosa de um pôr-do-sol pode levar apenas a um resultado medíocre. A pintura já tinha feito esta descoberta antes de a fotografia surgir, mas a câmara tornou muito mais fácil arriscar. Seu imediatismo estimula a experimentação. Com a facilidade mecânica, proliferou a imagem inconseqüente, irresponsável. Os resultados chegaram cheios de surpresas: a beleza também podia emergir da feiúra, do asqueroso, do imoral.
Nossa apreensão do mundo visível com o binômio olho-cérebro (a retina é efetivamente um prolongamento do tecido cerebral) tem muito pouco a ver com a visão da máquina-filme. É lugar-comum, quando se trata de explicar o funcionamento da máquina fotográfica, compará-la ao olho humano, mas a semelhança não vai além do aspecto exterior, estrutural, e um tem muito pouco a ver com o funcionamento do outro.
O simples fato de olharmos a realidade objetiva já a transforma. Os olhos, óbvios e transparentes nos caminhos físicos da luz, tornam-se turvos, misteriosos e escuros nos intrincados meandros cerebrais que processam a informação visual. Ali se misturam outras realidades que condicionam, sublimam e transformam a realidade claro-escura da luz. Vemos com mais nitidez o que queremos ver; podemos ver, até, apenas o que queremos ver.
"Apertava os olhos, ofuscado pelo excesso de luminosidade, e mesmo à contraluz percebeu, quando ela cruzou as pernas, que a calcinha era azul..."
Na enxurrada de informações que chega à retina, o cérebro seleciona - conscientemente ou não - apenas aquela que é mais importante ou que interessa mais, e concentra aí toda a atenção, transformando o olho numa poderosa teleobjetiva.
"Mais algumas páginas revelariam o assassino. Seus olhos percorriam num automatismo banal e fantástico os minúsculos sinais pretos na folha branca de papel. Estava totalmente absorta, transportada..., mas não pôde deixar de perceber, com o canto do olho, quando uma folha caiu, de leve, na poça d'água..."
O olho humano cobre um campo de mais ou menos 150° na vertical e 120° na horizontal. Juntos, os dois olhos abrangem cerca de 180°, na horizontal. Neste campo, os detalhes se tornam minúsculos, insignificantes. Na prática o cérebro ignora esta enorme quantidade de informação, mas qualquer alteração, um movimento, uma sombra é percebida e prontamente analisada. O olho funcionaria, assim, como uma super grande-angular!
Não tem muito sentido, portanto, procurar entre as objetivas da máquina aquela que melhor "corresponde" ao olho do homem. Na fotografia temos um campo limitado por quatro linhas retas (o que parece ser um acidente cultural, já que pelo próprio formato a objetiva produz um círculo de imagem. A primeira Kodak fazia fotos redondas com oito centímetros de diâmetro!) e este quadrilátero tem uma importância decisiva. Com ele seccionamos pedaços do mundo, elegemos o que queremos mostrar e, principalmente, eliminamos o que não interessa.
Escolhemos o que nos parece mais interessante, mais significativo ou mais desejável e emocional, na miríade de componentes de um tema, e quando se escolhe o quê e como mostrar, o escolhido passa a ter, também, um pouco de quem escolheu.
O homem acredita em seus olhos mais que em qualquer outro sentido e por isto é facilmente iludido por eles:
"A confusão crescia. Juntava cada vez mais gente querendo saber o motivo daquele berreiro. A mãe, desesperada, tentava por todos os meios convencer o pequeno de que aquele sorvete era mentira, feito de cera e de tintas. O menino insistia: queria aquele sorvete, provando pelo avesso a sabedoria popular: o que os olhos vêem e o coração sente pode ser mais real que a própria realidade".
"Na esquina a banca de revistas exibe suas 'playboys' com promessas nas capas de saciar todas as volúpias de um sexo visual. Estão cheias de imagens que, silenciosas, sem cheiro nem gosto nem tato nem calor, se fazem mulher".
Maravilha do engenho humano que num amontoado de pontinhos - em doses certas, nas cores certas e nos lugares certos - pode evocar as delícias, o sabor e o aroma, todo o prazer de um prato gostoso ou, então, o aconchego macio, morno, aveludado e perfumado de um corpo de mulher!
Mil palavras
Faltavam apenas quatro anos para terminar o século quando a fotografia invadiu os domínios de Gutenberg. A primeira página do New York Tribune do dia 21 de janeiro de 1897 publicava a primeira imagem impressa sem o "auxílio da mão do artista". O retrato de um senador fora transportado para a chapa de impressão por um processo que, hoje, chamamos de fotomecânico e que transforma as diferentes tonalidades da imagem em agrupamentos de pontinhos maiores ou menores, que por sua vez transportam mais ou menos tinta para o papel, tornando possível imitar quase toda a gama de cinzas com uma única cor de tinta.
Por mais que um negativo possa ser copiado indefinidamente, só a reprodução gráfica, a fúria das rotativas que cospem milhares de cópias por hora transformou, definitivamente, a fotografia num produto de massa. Nas páginas dos jornais e revistas a fotografia encontrou um caminho aberto para invadir cada vez mais nossas vidas: contamos com ela como certa e segura no jornal de amanhã, trazendo as imagens das notícias de hoje.
A partir dos anos trinta floresceram as revistas ilustradas, trazendo para um público sedento de imagens aspectos do mundo que poucos conheciam: a elegância e o submundo das noites parisienses, os costumes bárbaros de um povo africano, os ritos das cortes de reis e rainhas, a vida simples da pequena aldeia espanhola ou animais selvagens em seus ambientes naturais. Fotógrafos saíam pelo mundo, dando passos decisivos para transformá-lo na "aldeia global". Voltavam cheios de imagens para compartilhar com milhões de leitores (ou espectadores?) suas aventuras, vistas, vividas e fotografadas. Foi aí que se começou a falar em ensaio fotográfico, foi então que se cristalizou a idéia do padrão de conversão: uma foto poderia ser trocada por mil palavras. O tal do ensaio era uma seqüência de imagens do mesmo assunto, com a pretensão de ser uma historinha, pois, se cada uma valia mil palavras, parecia óbvio que com uma dúzia delas se pudesse fazer um pequeno conto.
Estimulados por tiragens sempre crescentes, fotógrafos e editores esforçavam-se por desvendar a sintaxe da nova narrativa, aplicando muitas vezes às imagens, conceitos e estruturas verbais. A substituição de palavras por imagens é um tema que até hoje gera boas discussões.
John Szarkoviski, então curador de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, acha que as tentativas de contar histórias com imagens nunca foram, de fato, bem-sucedidas. Com fina ironia, ele descreve esses primeiros ensaios: "... tinham quase sempre um título como 'Um dia na vida de um jóquei', ou algo parecido e, ao que parece, começavam sempre com o sujeito desligando o despertador". Depois, mais sério, justifica o insucesso dessas foto-historinhas: "Tirar fragmentos isolados da continuidade do tempo - o que a fotografia faz - é praticamente o oposto do que faz a narrativa", e pondera outra vez irônico, que, das mil palavras "quase todas são substantivos e adjetivos, enquanto uma história precisa de verbos".
Já os editores da Biblioteca Life de Fotografia argumentam que "não há nada de original em contar histórias com imagens. Fazia-se isto nos túmulos egípcios e ainda se faz nas histórias em quadrinhos". Quando olhamos, mais de meio século depois, esses ensaios - principalmente aqueles que se propunham a contar o cotidiano de um cidadão qualquer -, o que mais transparece é ingenuidade. Ingenuidade de um público que consumia e se emocionava com imagens que, hoje, nos parecem piegas, fabricadas e encenadas por atores e não, como são apresentadas, "momentos captados da vida de gente comum". Hoje o público parece mais cético ou menos disposto a se emocionar com os sorrisos e as lágrimas de uma moça do interior que chega a Nova Iorque cheia de "esperanças e temores" em busca do sucesso. É difícil acreditar no testemunho fotográfico de um rosto banhado de lágrimas, fotografado na intimidade de um quarto de pensão, apoiado no ombro da amiga, com uma legenda que explica : "Após uma briga com Charlie pelo telefone, Gwyned explode em lágrimas no ombro de Marilyn".
Algumas páginas antes o ensaio mostrava o romance de Gwyned e Charlie.
Ironicamente, este ensaio publicado pela Life no final dos anos quarenta, não começa com o personagem desligando o despertador. Mas a explicação pode ser encontrada, de novo, na legenda: "Gwyned tem dois despertadores. Ambos estão quebrados, assim, às 7:30 ela é despertada por sua senhoria..." e, para tornar as coisas ainda menos verossímeis, a senhora que substitui os despertadores chama-se "Mrs. Bell".
Nos anos sessenta as tiragens das revistas ilustradas caíram rapidamente e, em muitos casos, a um nível fatal. Chegava ao fim uma proposta editorial que obtivera um espetacular sucesso no pós-guerra, vítima das modificações profundas e vertiginosas que a sociedade vivia. Querendo provar que as imagens podiam contar uma história tão bem quanto as palavras, os teóricos do ensaio fotográfico tentaram elaborar uma "gramática visual", forçando, muitas vezes, uma semelhança literal entre as estruturas visual e verbal. Fotos que eram "vírgulas visuais" e outras coisas assim faziam parte do jargão dos editores de ensaios. Todavia, a comparação da linguagem fotográfica a outra, não visual, acabou por deixar mais claro o papel de cada uma.
É comum comparar um fenômeno a outro similar, na tentativa de melhor compreendê-lo. Por razões óbvias, a fotografia sempre foi comparada a outras manifestações que usam a imagem como meio de expressão, e não à comunicação verbal. Quando se quis substituir uma pela outra, ficou patente que elas eram linguagens complementares, e não equivalentes. Há imagens que não podem ser substituídas nem por um milhão de palavras, da mesma forma que elas não podem substituir a informação verbal. Elas nos atingem por caminhos diferentes e exatamente por isto se completam tão bem.
A palavra é racional, dissertativa, prolixa. A imagem, emocional, sintética, direta. A palavra pode expor com clareza uma idéia, conceituar com precisão. A imagem é de natureza mais onírica (incluindo-se aí os pesadelos), mais ilógica e nebulosa. É insubstituível para transmitir, num relance, toda a emoção de um evento, mas falha ao tentar analisá-lo.
É possível identificar alguma tendência dominante na fotografia atual? A julgar pelo que se vê, eu diria que não. Nos últimos anos, a exemplo do que vem acontecendo em todos os campos de manifestação intelectual e artística e, em particular, nas artes plásticas, os fotógrafos têm experimentado absolutamente tudo.
Ressuscitaram-se técnicas tão velhas quanto a própria fotografia, como os "papéis salgados", empregados por Talbot há quase 150 anos; os "non silver processes" são anunciados com orgulho nos currículos das escolas, trazendo de volta a goma bicromatada, o bromóleo, a sofisticadíssima "platinum print" e outros processos abandonados no início deste século. Edita-se muito e se fala ainda mais. As propostas conceituais vão desde o simples registro fotográfico de excrementos caninos ao longo de uma estrada (com hora e quilometragem anotadas), até o audacioso envolvimento com o tema a que se propôs a jovem e bonita Corinne Burrier: abordar desconhecidos nas ruas de Nova Iorque e convidá-los para posarem juntos, num prolongado beijo, para sua câmara, usada com o disparador automático. Quase todas as tendências que marcaram diferentes períodos na história da fotografia, senão todas, podem ser vistas, lado a lado, nas obras de fotógrafos contemporâneos.
Um exemplo digno de nota: em 1982 uma mostra reuniu quize jovens fotógrafos espanhóis, em São Paulo. A exposição foi recebida com restrições pela crítica especializada local, apesar de ter, literalmente, fotografia para todos os gostos. Muitos se sentiram como jurados, diante de tendências tão divergentes, limitando-se a eleger seus preferidos ou rejeitar o que mais abominavam, deixando passar despercebido um fato indiscutível e significativo, que transparecia naquele conjunto de obras: não eram apenas 15 estilos diferentes, eram quinze escolas, quinze afirmativas veementes e dissonantes - mas válidas - do que possa ser fotografia. Esta simultaneidade de visões tornava a exposição autêntica e contemporânea.
A irrepreensível qualidade dos trabalhos eliminava qualquer suspeita sobre a seriedade das propostas. Esta seriedade e o domínio de cada técnica específica eram o único traço que unia os mais de duzentos trabalhos expostos. Técnica, temática ou conceitualmente os quinze autores seguiam diferentes caminhos. Havia de tudo: colagens, montagens, intervenção direta com lápis e pincéis sobre a imagem fotográfica, cópias em papéis artesanais, fabricados pelo próprio fotógrafo, justaposição de imagens e trabalhos que poderiam ser chamados de "clássicos" no campo da reportagem, do retrato e da natureza morta.
Aquela exposição refletia um traço marcante de nossa época, uma conquista de nossa cultura, em todos os aspectos; algo que pode ser confirmado em qualquer lugar, a qualquer momento: há espaço para todas as crenças. Hoje, a aceitação de uma proposta não implica, necessariamente, a negação de outras. É possível a coexistência de todas as modas, o que é, de cena forma, a negação de qualquer moda.
Diz-se que a arte é um reflexo do tempo e da cultura que a produziram. A vitalidade caótica do conjunto de obras daqueles jovens mostrava mais que um aspecto regional da cultura ibérica traduzia as profundas transformações vividas pela humanidade nas últimas décadas, a evolução de um pensamento que se disseminou com a rapidez dos novos meios de comunicação, propondo o rompimento com todos os vínculos e compromissos sociais, a derrubada de todos os preconceitos e tabus e a inevitável revisão do papel da arte e do artista na sociedade.
Se o domínio de uma técnica pode ser substituído pela ousadia de um conceito, pela surpresa de uma novidade ou extravagância de uma atitude, parece fácil virar "artista consagrado" da noite para o dia. Os "profetas de uma nova estética", estimulados pelas altas cotações de um mercado especializado e elitista, correm um risco pequeno, e o prêmio é tentador.
No caso particular da fotografia, as fabulosas conquistas da tecnologia embutidas na câmara e nos filmes transferem para a indústria, cada vez mais, a responsabilidade de um know-how. O sonho secular de George Eastman - "Você aperta o botão, nós fazemos o resto" - ganha uma nova dimensão. Agora, parece mais fácil do que nunca o atalho da fotografia para os que querem galgar um novo status social.
Toda em confusão não surgiu da noite para o dia. Quando se tem uma visão dos principais eventos que marcaram a história da fotografia, quando se pode perceber a alternância dos padrões estéticos vigentes, muitas vezes ditados pela técnica disponível no momento, fica mais fácil compreender um conjunto aparentemente tão caótico como o daqueles jovens espanhóis.
Uma foto famosa
"The Two Ways of Life" (Os Dois Modos de Vida) é título de uma das mais exóticas fotografias de todos os tempos. Foi exibida, em 1857, na exposição "Art Treasures", em Manchester, e para compor a cópia, que media aproximadamente 40x90cm, Oscar Rejlander - fotógrafo e pintor sueco, que morava em Londres - usou mais de trinta negativos diferentes, combinando-os num mosaico ou quebra-cabeças. Rejlander imaginava que, ao trabalhar sua cópia nos moldes usados pelos pintores com temas grandiloqüentes e simbólicos, calcados na mitologia clássica, ia assegurar um lugar de destaque para a fotografia entre as "Belas Artes".
No centro da composição um ancião de barbas brancas, vestido com pesado manto, conduz dois jovens através dos umbrais da idade adulta. Tais umbrais se materializam num pórtico monumental que divide o espaço da obra numa visão maniqueísta: à direita fica o bom caminho e à esquerda a perdição. Um dos rapazes, o da esquerda, já se inclina, com a mão em concha na orelha, atraído pelo canto da sereia. O da direita ainda está de mãos dadas com o velho...
E por aí vai. Nesta obra, cada detalhe, por menor que seja, está impregnado de significados, nem sempre muito claros. No lado da perdição reclinam-se, em lânguidas poses, mulheres despidas, com um providencial paninho para bem do pudor (reinava a rainha Vitória!).
Rejlander usou atores de um grupo mambembe para as longas poses, que simbolizavam uma velha prostituta, um assassino, jogadores, sereias, a intriga e a cumplicidade, a preguiça, a desobediência da juventude e bacantes, de um lado, e do outro, o arrependimento, a sabedoria, a religiosidade, a penitência, a juventude sadia, o trabalho e a família.
A imagem, olhada mais de um século depois, nos parece absurda. Na época, deve ter agradado muito, pois a própria rainha comprou a cópia, para presentear seu consorte, o príncipe Albert. Mas este não é o único exemplo de fotomontagem e tampouco o primeiro. Conta-se que Rejlander "inventou" a técnica quando constatou, furioso, que era impossível focalizar ao mesmo tempo as três pessoas de um grupo que queria fotografar: duas damas sentadas no sofá e um cavalheiro de pé, atrás do encosto. Neste caso, teria sido uma limitação técnica, imposta pelos porcos recursos da época, o motivo de uma solução que passou a ser defendida veementemente, por outro fotógrafo da época, Henry Peach Robinson, como um elemento fundamental da sintaxe fotográfica.
Nascia o que, hoje, pode ser chamado de primeira "escola" na fotografia, com seus seguidores e os inevitáveis adversários, com uma postura definida a ser defendida e criticada, através de intermináveis artigos nas publicações especializadas.
Robinson se tornou o principal defensor teórico da fotomontagem. Para justificar a nova técnica citava o método empregado pelo pintor grego Zeuxis, na composição de seu quadro "Helena".
Conta-se que Zeuxis recorreu a cinco modelos - cinco das mais belas mulheres de sua cidade, Crotona - para aproveitar apenas a parte mais perfeita de cada uma na criação da belíssima Helena. Para Robinson a combinação de vários negativos, feitos independentemente, era a melhor maneira de ser fiel à natureza. Claro, o artista precisaria estar atento para não cair na tentação de falseá-la! .O próprio Robinson adverte: "O fotógrafo não deve permitir que sua criatividade o leve a representar, por nenhum tipo de truque, qualquer cena que não exista na natureza; se o fizer, estará violentando sua arte, pois é sabido que o resultado final representa um objeto ou seres que existiram, por um espaço de tempo, diante da sua câmara". (grifo meu).
Não existe proposta, por mais absurda que possa parecer, que não encontre na razão argumentos para defendê-la. Qualquer tese é defensável e sua antítese também. A técnica do "mosaico", defendida por Robinson, solucionava alguns problemas que, ainda hoje, desafiam a perícia dos fotógrafos e eram, na época, praticamente insuperáveis. A montagem de diversos negativos permitia ao artista controlar cada parte da cena isoladamente (quanto à nitidez, luminosidade, contraste etc.) e ainda juntar, como um pintor faz no quadro, elementos que não se encontram facilmente na mesma hora ou no mesmo lugar. Além disso, tornava possível eliminar o indesejável.
Se por um lado toda esta flexibilidade proporcionava ao fotógrafo uma liberdade de criação muito maior, por outro, ficava muito mais fácil "falsear a natureza". A fotomontagem se tornava uma ameaça a um dos aspectos mais característicos da fotografia: seu conteúdo intrínseco de documento, a consciência universal e inevitável de que é preciso ter existido a cena diante da câmara, para que a imagem possa existir. Percebendo a contradição, Robinson estabelece um compromisso ético ao afirmar que estaria "violentando sua arte" aquele que criasse uma imagem inexistente na natureza. É a fotografia imitando a fotografia!
Para nossos olhos modernos, saturados de fotografia, as fotomontagens de Rejlander e Robinson parecem estranhas à primeira vista. Percebemos que alguma coisa está errada. O resultado parece mais uma pintura do que uma fotografia. Isto se deve à incoerência da perspectiva, à existência de vários pontos de vista num mesmo quadro, um para cada negativo original. Mesmo quando os problemas de escala, iluminação, contraste e nitidez são solucionados com perfeição, a perspectiva irreal aponta o artifício.
É curioso notar que capacidade de percepção visual coletiva também muda ou evolui com o passar do tempo. Ao que parece, aquelas imagem agradavam em cheio o público da época: Rejlander, por exemplo, vendeu 60 mil cópias de uma de suas composições, no formado 24x30cm, e mais 250 mil em tamanho postal! Um recorde provavelmente jamais superado, se levarmos em conta que eram cópias fotográficas e não impressas. Na pintura da época não eram raras as composições com mais de um ponto de vista.
Um toque feminino
Quando se conta uma história destacam-se os aspectos que conduzem o enredo a um fim conhecido, omitindo inúmeros outros que são menos importantes para os objetivos da narrativa. Se a história é recente, é mais fácil para o ouvinte ou leitor, completar mentalmente o contexto da época, mas quando os fatos estão mais distantes, muita coisa fica esquecida. Por exemplo: estamos falando da adolescência da fotografia, de quando fora inventada há menos de vinte anos, num mundo sem luz elétrica, sem telefone, sem rádio nem automóvel. O fotógrafo dessa época precisava lidar com um arsenal de produtos químicos (alguns até perigosos) para preparar suas chapas de vidro momentos antes de bater a foto, usando-as ainda úmidas e as revelando logo em seguida para aproveitar ao máximo a sensibilidade da emulsão que, depois de seca, se tornava ainda menos sensível. Eram as famosas chapas úmidas.
Tudo isto pode, facilmente ficar esquecido, quando omitido. Da mesma forma, pode parecer que naquele tempo todo mundo só fazia fotomontagens, seguindo os moldes de Rejlander e Robinson. Mas as coisas não eram bem assim e muita gente se contentava com a imagem direta da câmara fotográfica. O próprio Rejlander, que foi "o pai da criança", desistiu das complicadas montagens alegóricas em 1865, dedicando-se apenas a retratos e "estudos acadêmicos de nu", por sinal, seus melhores trabalhos. Entre as heranças de suas cópias compostas, fica a maldita idéia do truque fotográfico. Ainda hoje, vira e mexe a gente esbarra na idéia de que, por trás de um bom fotógrafo, sempre existe uma porção de truques. Muitas escolas exploram esta idéia infeliz prometendo em seus anúncios "revelar todos os truques" como se se tratasse, afinal, de uma caixa de surpresas.
Entre os fotógrafos dessa época que jamais se meteram com o quebra-cabeças das montagens destaca-se urna mulher: Julia Margaret Cameron. Sua vasta obra - uma das mais importantes desse período - foi toda feita em menos de dez anos. Sob o retrato de uma menina, ela escreveu: "Annie - my first success - Jan 1864". Julia obteve seu "primeiro sucesso" aos 48 anos, alguns meses após receber de presente, de um de seus filhos, uma máquina de retrato (e aqui a expressão cabe melhor do que nunca) e toda a parafernália necessária para fazer fotografia. Exultante por conseguir um retrato de Annie que satisfazia suas exigências, ela se põe a fotografar febrilmente - "usando, desde o início, minha lente com ardor e ternura" - para nos deixar alguns dos mais belos retratos de todos os tempos.
Cameron conviveu com algumas das mais importantes personalidades de sua época e retratou, entre outros, Charles Darwin, Sir John Herschel (astrônomo e fotógrafo amador), o poeta Taylor, o escritor e historiador Thomas Carlyle, Alice Liddell (para quem Lewis Carroll inventou e contou Alice no País das Maravilhas) e muitos outros. Com todo seu "ardor", contam que era um verdadeiro suplício posar para ela, apesar da "ternura", mas os retratos que ficaram testemunham que valia a pena o sacrifício. Julia Cameron também ilustrou, com fotos, os poemas de Alfred Tennyson. Estas imagens, no entanto, são alegorias posadas, que não resistiram ao passar dos anos como seus retratos. Em março de 1974, um perfil da sra. Herbert Duckworth, mãe de Virginia Woolf, feito por Julia 107 anos antes, bateu o recorde de preço pago por uma fotografia num leilão até então: foi arrematado por 1.500 libras na Sotheby, de Londres.
Naturalismo
O próximo passo vem de um médico e fotógrafo amador, seriamente preocupado em descobrir se, afinal, a Fotografia era ou não uma arte.
Peter Henry Emerson, o médico, foi buscar nas então recentes descobertas de Helmholtz sobre a fisiologia da visão, os argumentos para defender uma nova proposta de imagem fotográfica. Numa conferência que fez no Camera Club, de Londres, Emerson atacou violentamente os ideais artísticos da época, definindo o livro de Robinson como "a quinta-essência das idéias anacrônicas e preciosistas". Para ele, uma foto totalmente nítida não poderia representar corretamente a forma como vemos o mundo. A justificativa era "científica": a visão humana só é nítida no "ponto de fixação", correspondente a uma pequena área central da retina, a fóvea.
Usando recursos da própria sintaxe fotográfica, propunha aos fotógrafos que focalizassem apenas o motivo principal, deixando ligeiramente desfocado o resto da imagem. Para isso recomendava o uso de um diafragma bem aberto, pois quanto maior a abertura do diafragma, menor a zona de nitidez que se estende para trás e para frente do motivo focalizado. Defendia também o uso de papéis mate (foscos) e de superfície o mais lisa possível, para preservar as sutis gradações de tonalidades tão características da imagem fotográfica (estavam virando moda os papéis brilhantes ou com a superfície com textura).
Vinte anos após a publicação do livro de Robinson - O Efeito Pictórico na Fotografia - sai do prelo Fotografia Naturalista para Estudantes de Arte, em 1889, reunindo as idéias de Emerson. Robinson não perde tempo e dá o troco, declarando o livro "bastante fora de foco, carecendo de definição e composição". Robinson argumenta que o olho humano saudável jamais vê qualquer parte da cena fora de foco, pois está em constante movimento e permanentemente ajustando o foco para aqui ou acolá. Emerson se defende lembrando que, de qualquer forma, toda composição exige um centro de atenção, logo... E por aí segue um interminável debate falado e escrito.
O Naturalismo tem vida curta. Os pintores impressionistas desvendaram um mundo maravilhoso na imagem que se dilui, fragmenta-se, tornando-se cada vez mais indefinida, cada vez menos uma reprodução fiel da realidade. Os fotógrafos querem imitá-los; acreditam poder encontrar aí o caminho para a verdadeira arte. Não percebem que, em parte, foi a própria fotografia que libertou a pintura para esses vôos. Emerson, vencido em suas teses, publica em 1891 um panfleto, tarjado de preto, intitulado: "A Morte da Fotografia Naturalista", onde declara solenemente que a fotografia não é arte ou, na melhor das hipóteses, é apenas uma arte menor. Quando surge a terceira edição de seu livro, o último capítulo vem mudado: antes se chamava "Fotografia, uma Arte Pictórica"; agora, expõe as últimas conclusões de seu autor e tem como título "Photography - Not Art".
Pictorialismo
"Isto não se parece em nada com uma fotografia!"
Nenhum outro elogio poderia deixar o fotógrafo do fim do século mais satisfeito, conta Gernsheim, um dos mais competentes historiadores da fotografia. Para Gernsheim "a fotografia artística não era, na verdade, nem arte nem fotografia". Os pictorialistas usaram e abusaram de todos os meios disponíveis para, literalmente, degradar a imagem fotográfica. Quanto mais o resultado se parecesse com uma gravura, um crayon ou outra coisa qualquer, melhor.
O ano de 1890, para muitos o marco inicial do movimento que ficou conhecido como Pictorialismo, também foi marcado pela publicação dos estudos de Ferdinand Hurter e Vero C. Driffield, que pela primeira vez colocavam em bases científicas os comportamentos das emulsões fotográficas, estabelecendo os fundamentos da sensitometria (ciência que trata da relação entre a quantidade de energia (luz) recebida por um material sensível e a quantidade de prata nele depositada após a revelação). Até então, os fotógrafos dependiam de conhecimentos empíricos, não quantificados e misturados com palpites e superstições. A indústria de filmes e papéis esboçava seus primeiros passos e a maioria dos profissionais e "amadores sérios" preferia preparar suas chapas e papéis.
O rompimento entre naturalistas e pictorialistas surge - parece incrível! - a partir de uma discussão sobre a adequação ou não dos papéis com textura à imagem ótica. Os resultados se assemelhavam mais às gravuras, o que poderia prejudicar a afirmação da fotografia como uma arte autônoma.
Quando George Davison - ainda um ardente defensor da fotografia naturalista, de Emerson proferiu uma conferência na Society of Arts, exaltando as qualidades artísticas dos papéis rugosos, e afirmando categoricamente que as cópias feitas nestes papéis "eliminavam as suspeitas de críticos honestos, que abominavam a fotografia, por ser dura, vulgar e irreal", Emerson começou a se certificar da morte da fotografia naturalista. Ele não podia aceitar papéis que destruíam o que lhe parecia a mais peculiar característica da fotografia: a sutileza das gradações de tonalidades.
Os papéis rugosos seriam apenas o primeiro passo na enxurrada de técnicas de obtenção da cópia, que caracterizou o período pictorialista. Em geral, cada novo processo permitia um maior grau de manipulação dos resultados. Depois, multiplicar-se-iam as lentes propositalmente defeituosas, com novos tipos de aberrações que incluíam flous para todos os gostos. Tudo isso eliminava da imagem fotográfica o excesso de informação que a caracteriza e que é transferida ao filme independentemente da vontade do artista. Os resultados lembravam cada vez mais os quadros impressionistas, quer pela temática, quer pelo "tratamento".
Mas, além dos problemas estéticos, os pictorialistas começaram a se assustar com a rápida proliferação de amadores. Queriam, também, diferenciar suas obras dos meros registros feitos pelos que apenas apertavam o botão das milhares de kodaks. Esta preocupação está explícita nas palavras de um dos mais célebres pictorialistas, o banqueiro francês Robert Demachy (a maioria dos pictorialistas era rica ou da classe média alta). Ele diz textualmente: "A obra de arte não reside no tema, mas na maneira de mostrá-lo; na verdade, a objetiva mostra mal, ou se preferirmos, bem demais. Em todo caso ela mostra sem graça, de um modo burguês, friamente. Para encurtar: se dermos liberdade à objetiva, voltamos as costas à Arte. Pouco me importa se o amador usa óleo e borracha ou platina, se ele prepara suas chapas ou as ataca com lâmina, desde que me mostre uma imagem que seu vizinho não possa facilmente duplicar. Não quanto à composição ou disposição do motivo, mas na forma de interpretá-lo através de sua linguagem".
O óleo e a platina são duas entre as inúmeras técnicas de copiagem então usadas. Representam praticamente dois extremos de uma escala: os papéis à base de platina (com sais deste metal em vez dos usuais, de prata) produzem uma imagem limpa, ricamente detalhada e se prestam pouco à manipulação. As cópias à base de tintas a óleo ou gordurosas, ao contrário, podem ter sua imagem profundamente alterada pela ação abrasiva de uma borracha ou lâmina, pela manipulação dos pincéis, pela diluição das tintas etc. Alguns anos antes, recorria-se à lupa para julgar uma foto, na busca de vestígios que denunciassem a heresia do retoque. Agora, pesquisavam-se novas formas de obter uma cópia fotográfica que permitisse maior interferência, deliberada, sobre o resultado final.
Todo esse arsenal de alquimias e técnicas, habilidades e destrezas, segredos e paciência permitia ao fotógrafo se identificar mais com pintores e gravadores. Houve tempo em que os pintores perscrutavam uma tela mais com o nariz que com os olhos, apurando o olfato em busca de algum segredo emanado de tintas e solventes. Agora era a vez de a fotografia multiplicar seus truques e mistérios. O rebuscado aparato servia também para distinguir a foto de arte na enxurrada de imagens que começava a jorrar de mãos que se contentavam em "apertar o botão". Os pictorialistas, ao contrário, punham toda ênfase em "fazer o resto", talvez numa reação ao famoso slogan.
Hoje são necessários mais de dez algarismos para contar as fotos feitas pelo mundo afora em apenas um ano. Destas, uma pequena parcela vem dos profissionais e um número ainda menor pretende um lugar de destaque no Olimpo das Artes. A indústria de equipamentos e filmes amplia cada vez mais o significado daquele "nós fazemos o resto", consciente de que entre "uma idéia na cabeça" e "uma câmara na mão", a primeira é muito mais importante. Mas o processo de industrialização também traz, inevitavelmente, a padronização, a uniformização, o estreitamento do leque de opções. O estreitamento incomoda aqueles que buscam uma imagem mais pessoal. A uniformização, qualquer que seja o padrão adotado, traz de volta a questão de o vizinho poder facilmente duplicar sua imagem e, por isto, hoje, quase cem anos depois, muitos se voltam para o passado e vão pesquisar velhos formulários para experimentar processos há muito esquecidos.
A história da fotografia contada há algumas décadas apenas, na melhor das hipóteses mencionava o Pictorialismo como um movimento de fotógrafos amadores, sem grande importância nos rumos da "verdadeira fotografia". Alguns o consideravam um retrocesso técnico e estético que era melhor esquecer ou classificavam suas obras como "de gosto duvidoso sob forte influência do estilo de 1900". Foi apenas na década de setenta que se propôs uma revisão e reavaliação da produção fotográfica que dominou a Europa de 1890 até a Primeira Guerra.
Stieglitz
Para entender esta rejeição ao Pictorialismo até pouco tempo atrás, precisamos chegar à straight photography, a imagem direta que ditou as normas da boa fotografia durante tantos anos deste século. Quem nos conduz a ela é um homenzinho fascinante: Alfred Stieglitz. Com ele cruzaremos o Atlântico, rumo aos Estados Unidos, palco dos próximos atos.
Stieglitz nasceu nos Estados Unidos, mas se mudou para a Alemanha aos 17 anos e formou-se como engenheiro fotoquímico pela Universidade de Berlim. Voltou para Nova lorque com 26 anos, estabelecendo-se como fotogravador (especialista na impressão de fotografias).
Sua importância ultrapassa seus méritos como fotógrafo, apesar dos mais de 150 prêmios e medalhas conquistados nos mais importantes salões do mundo. Ele influiu de forma decisiva na história cultural dos Estados Unidos e traçou novos rumos para a fotografia internacional. A ação de Stieglitz (1864-1946) é tão intensa, criando raízes que se aprofundam e alargam até quase os nossos dias, que se torna difícil sintetizá-la aqui. O período mais efervescente se concentra nos últimos anos do século XIX e nos primeiros deste. Stieglitz editou três publicações periódicas sobre fotografia e artes plásticas: American Amateur Photographer, mensal, de 1893 a 96; Camera Notes, trimestral, órgão do Camera Club of New York, de 1897 a 1902 e o lendário Camera Work, também trimestral, de 1903 a 1917. Fundou e dirigiu três galerias de arte onde a fotografia tinha um papel predominante: The Little Galleries, que depois passou a ser conhecida apenas por seu número na Quinta Avenida - "291" (de 1905 a 1917); An Intimate Gallery, de 25 a 29, e "An American Place" de 1929 até o final de sua vida.
Talvez o maior mérito de Stieglitz, e razão da importância e proporções dos movimentos que liderou, resida num fato banal e óbvio: ao contrário de seus antecessores, ele nunca colocou a fotografia em oposição às outras manifestações das artes plásticas, nunca tentou provar seus méritos em termos comparativos. Para Stieglitz, a fotografia sempre foi, apenas, um dos meios à disposição dos artistas, assim como a pintura, a gravura, a escultura etc.
Stieglitz estava tão envolvido e entusiasmado com os movimentos artísticos que explodiam na Europa (voltou lá em 1904, 07, 09 e 11) que apresentou aos americanos, em suas galerias, pela primeira vez nomes que depois se tornariam lendas: em 1907, Rodin e Matisse; em 1909, litografias de Toulouse-Lautrec; em 1910, Cezanne e Rousseau; em 1911 chega a vez de Picasso, e nos anos seguintes, Picabia, Brancusi e Braque. As páginas de Camera Work também vão sendo cada vez mais ocupadas pelos trabalhos destes gigantes, ao lado de textos de Bernard Shaw, Henri Bergson e muitos outros.
Stieglitz começou a fotografar em 1883. Acompanhou de perto, na Europa, os movimentos que levaram ao Pictorialismo e, ao mesmo tempo, testemunhava um dos mais fecundos e prolixos momentos das artes plásticas. De volta aos Estados Unidos, no ano em que Van Gogh se suicidou (1890), encontrou um panorama morno, apesar da infinidade de amadores e de quase toda cidade ter seu clube de fotografia. Stieglitz tinha os olhos voltados para horizontes mais longínquos. Após dois anos como membro da New York Society of Amateur Photographers surge seu grito de independência. Charles de Kay, fundador do National Arts Club e editor de arte do New York Times, convidou Stieglitz para preparar uma exposição de fotografia para o clube. Stieglitz preparou "Uma Mostra da Fotografia Americana Organizada pela Foto-Secessão".
Kay perguntou o que significava Photo-Secession e quem eram seus membros. Stieglitz respondeu que, quanto à expressão, acabara de inventá-la e que, no momento, ele era o único membro, mas que haveria outros na abertura da mostra. "A idéia de secessão é odienta para os americanos - lembra-lhes a Guerra Civil. Para mim não. Photo-Secession significa, de fato, um rompimento com a atual idéia do que seja fotografia; além do mais, na Europa, na Alemanha e na Áustria, tem havido rompimentos nos círculos de arte e os modernistas se intitulam secessionistas, assim, Photo-Secession realmente se liga ao mundo da arte. Há também um pouco de humor no termo Photo-Secession."
Na abertura da exposição havia, de fato, mais doze secessionistas, inclusive alguns nomes que se tornariam dos mais importantes fotógrafos de todos os tempos. Os padrões pictorialistas e suas técnicas ainda prevaleciam, mas nascia ali um movimento que marcharia com passos firmes para a valorização de uma fotografia direta, sem artifícios, que transformava os atributos da imagem fotográfica (tantas vezes tidos como limitações) em vantagens. Estava ali o embrião da straight photography. A passagem de um estilo ao outro foi lenta e gradual, e durante muito tempo a disputa serviu para avivar as discussões e publicações especializadas.
E agora?
A partir da década de trinta, a fotografia direta, sem artifícios, que alguns chamam de purista com uma pontinha de ironia, passa a nortear a quase totalidade da produção fotográfica. A obra de Edward Weston se transforma em padrão de referência. Seus nus sem retoque, com todos os pêlos, seus pimentões e repolhos provam que a beleza pode estar no tratamento fotográfico da imagem, qualquer que seja o tema. Outro fotógrafo do mesmo quilate, Ansel Adams, sistematiza um método - seu Zone System - visando o máximo de controle por meios genuinamente fotográficos. Com ele o fotógrafo poderia determinar de antemão, baseado em vários parâmetros estabelecidos empiricamente, a tonalidade exata de cinza em cada parte da cena, podendo pré-visualizar os resultados com bastante exatidão. (As diferentes tonalidades de uma escala de cinzas correspondem a diferentes 'zonas'. Daí o nome do sistema). A cópia é feita com um mínimo de interferência, em papel liso e, quase sempre, brilhante (ele permite uma escala mais ampla de tonalidades).
"Fomos com a intenção determinada e preconcebida de nos divertirmos e, se fosse necessário, tecer duras críticas. Saímos com muitos ideais seriamente abalados e não poucas opiniões destruídas. Não nos divertimos. Não pudemos criticar... a beleza clássica sempre foi, para nós, inalienável dos objetivos da Arte". Estas palavras foram escritas em 1933 por Sigismund Blumann, editor da revista Camera Crafts, de São Francisco, Califórnia, sobre a primeira exposição do "f/64 Group", um grupo fundado no ano anterior por Weston, Adams e outros cinco fotógrafos. Até então, Blumann e sua publicação eram defensores veementes da estética pictorialista...
Os padrões estabelecidos pelo "f/64" pareciam inquestionáveis até a década de sessenta. Algumas "aberrações anacrônicas", como o caso de William Mortensen, eram simplesmente ignoradas. Mortensen, que até 1955 manteve sua Mortensen School of Photography, na Califórnia, misturava as técnicas pictorialistas com os truques e fantasias dos estúdios de Hollywood. O título de sua obra-prima é elucidativo. Monstros e Madonas: Um Livro de Métodos, onde, além de explicar seus métodos, mostra alegorias de inspiração clássica cheias de belas e feras. Ele é a antítese das propostas dos straight photographers. A aversão por sua proposta, nas décadas de cinqüenta e sessenta, era tão violenta, que ele nem sequer é mencionado nos "Clássicos" da história da fotografia, escritos neste período.
Hoje, ele é redescoberto e suas obras republicadas. Podemos ver nas páginas das melhores revistas de fotografia, por exemplo, um horripilante e gigantesco macaco debruçado sobre uma donzela seminua, deitada no chão, numa foto que Mortensen fez na década de trinta e chamou "L'Amour". Podemos ver, também, nas mesmas revistas ou numa única exposição, "pictorialistas", "naturalistas", "primitivistas", "conceitualistas" e todos os outros "istas" que se possa imaginar. O bom e o medíocre lado a lado em pé de igualdade. Na teoria do "vale tudo - tudo é válido" sai perdendo aquilo que Stieglitz soube, como ninguém mais, exigir: um nível de qualidade excepcional. Não apenas qualidade técnica, mero domínio quase científico de um meio, mas qualidade entendida como a resultante de todos os elementos que determinam e criam a imagem fotográfica.
Cito, a seguir, algumas obras importantes para quem quiser aprofundar alguns dos temas levantados aqui. Em alguns casos a importância é muito discutível, mas a obra fica, por existir em português.
(NOTA: Estas indicações são de 1982! - É provável que muitos dos livros que aqui se indicam não estejam mais à venda e, mais certo ainda, haver, hoje disponíveis, muitas outras obras ausentes nesta lista, pois o autor há muito abandonou a fotografia.)
De caráter geral:
The Life Library of Photography - série em dezoito volumes organizada pelos editores da "Time-Life". São livros muito ilustrados e bem impressos. Abordam a técnica, a linguagem e a história da fotografia. A parte didática, muitas vezes, ilustra passo a passo as diversas etapas de cada técnica. São também um acervo das mais importantes obras fotográficas. Cada título trata de um assunto específico e cada um pode ir formando sua coleção aos poucos, na medida de seu interesse e possibilidades. Há traduções para o francês, espanhol e alemão.
Fotografia - Manual Completo de Arte e Técnica - Em um único volume de 400 páginas, a "Time-Life" de Londres tentou reunir as partes mais importantes da "Life Library". Numa obra desse tipo o critério de escolha é absolutamente decisivo e sempre é possível lamentar o que deixou de ser incluído. Abril Cultural editou, no Brasil, uma tradução desta obra com o título acima.
O Prazer de Fotografar - tradução de "The Joy of Photography", organizado pelos editores da Estman Kodak Company e lançado no Brasil pela Abril Cultural. É um livro destinado, em princípio, ao fotógrafo amador, mas onde o profissional também encontrará informações úteis. O projeto da obra intercala informações técnicas com considerações sobre o domínio da linguagem fotográfica. Inclui dois ensaios e dois depoimentos de dois fotógrafos: Ernst Haas e Gordon Parks. É uma boa introdução à técnica e linguagem fotográficas.
Sobre a história da fotografia:
Historia Grafica de Ia Fotografia é uma tradução para espanhol de "A Concise History of Photography" de Helmut e Alison Gernshein, editada por Ediciones Omega, de Barrcelona. O livro é um resumo muito ilustrado da obra básica dos mesmos autores sobre a história da fotografia, citado a seguir.
The History of Photography, de Helmut Gernshein e sua esposa, é a obra mais completa e bem documentada sobre a história da fotografia. Em suas 600 páginas, dá uma visão que começa na pré-história da fotografia e vem até quase nossos dias.
The History of Photography é também o título da obra de Beaumont Newhall, onde em pouco mais de 200 páginas ele apresenta sua visão da história da fotografia. É muito ilustrado e fácil de ler. Suas origens remontam a uma exposição organizada pelo autor para o Museu de Arte Moderna de Nova loque em 1937: "Photography 1839-1937". O texto do catálogo, enriquecido e ampliado, foi lançado em 1949 com o título atual. As edições mais recentes são atualizadas.
The Keepers of Light de William Crawford poderia estar incluído entre os livros sobre a técnica fotográfica, pois mais da metade de suas trezentas e poucas páginas tratam dos aspectos técnicos de antigos processos fotográficos agora ressuscitados. Mas é a primeira parte que é mais fascinante. Aí, Crawford propõe uma nova visão da história da fotografia onde procura vincular o estilo e o gosto de cada época aos recursos técnicos então disponíveis. Leitura importante para quem está interessado nas relações da fotografia com outras artes visuais. Há, ainda, uma parte tratando dos problemas de conservação e restauração de cópias fotográficas.
Sobre fotojornalismo:
Testemunha ocular foi lançado simultaneamente em vários países para comemorar os vinte e cinco anos da World Press Photo Foundation, da Holanda. O livro apresenta uma seleção de fotos premiadas pela Fundação de 1956 a 1980 acompanhadas de comentários de Harold Evans (editor do London Times) sobre os eventos registrados. No Brasil foi editado pela Abril Cultural e acrescido de 16 páginas que dão uma visão da fotografia jornalística brasileira no mesmo período.
Sobre a imagem fotográfica e seus autores:
É imensa a quantidade de livros que se propõe apenas a mostrar a obra de um fotógrafo, ou parte dela. Nesses livros, em geral, o texto tem uma importância secundária, limitando-se a alguns comentários sobre as imagens e dados biográficos; para a imagem, não há a barreira do idioma. Nas livrarias especializadas você poderá encontrar desde os "monstros sagrados" até "ilustres desconhecidos", fotógrafos de hoje e de ontem, inclusive brasileiros. Limito-me a mencionar três obras que reúnem portfolios de vários autores:
Looking at Photographs - 100 fotos da coleção do Museu de Arte Moderna, de John Szarkowski, editado pelo MOMA de Nova loque. São obras de 100 fotógrafos (alguns desconhecidos) apresentadas em ordem cronológica desde os primórdios da fotografia até o final da década de sessenta. Cada imagem é acompanhada de um pequeno e delicioso comentário de Szarkowski, diretor do Departamento de Fotografia do Museu. Um belo livro.
The Magic Image- The Genius of Photography from 1839 to the Present Day, por Cecil Beaton e Gail Buckland, podeeria ser considerado um livro de história da fotografia. Após uma introdução, o livro apresenta uma rápida biografia e comentários sobre a obra de mais de 200 fotógrafos, inclusive contemporâneos. Acompanhando o texto há reproduções da obra desses fotógrafos. Um apêndice traça a evolução de diferentes campos da fotografia: arquitetura, moda, reportagem, teatro, balé e a fotografia comercial no século passado, início deste e década de 20.
Faces - A Narrative History ofthe Portrait in Photography, de Ben Maddow, começa com uma afirmação aparentemennte paradoxal: "Metade do futuro da fotografia está no passaado." As 380 excelentes reproduções apenas de retratos fooram compiladas e editadas por Constance Sullivan e o texto é quase uma novela (uma boa novela) onde os personaagens são os fotógrafos e fotografados. Maddow, entre outras atividades, já publicara novelas, contos e poesia. Um livro caro e fascinante.
Sobre a arte e fotografia:
Art and Photography de Aaron Scharf. Nas quase 400 páginas deste livro pode-se ter uma visão das influências recíprocas da pintura e fotografia. Suas mais de 250 ilustrações evidenciam como a visão humana depende e é influenciada pelos meios que a estendem. O texto se concentra no levantamento histórico e discussão dos principais problemas que preocuparam e preocupam fotógrafos e artistas, sobre as limitações e recursos dos dois meios.
Visões pessoais sobre a fotografia:
Ensaios sobre a Fotografia, de Susan Sontag, editado no Brasil pela Arbor em 1981. O mínimo que se pode dizer desta coleção de seis ensaios publicados originalmente no "New Yorker Review of Books", é que são essencialmente polêmicos. Quando foram reunidos em livro - "On Photography" - e publicados em 1977, suscitaram uma reeação apaixonada, pró e contra, entre os leitores nortericanos. A edição brasileira trouxe o debate para cá. Sontag apresenta uma visão ultrapessoal do papel da fotografia no contexto social, misturando uma observação aguda com inferências surpreendentes. Vale a pena conferir.
La Chambre Claire, de Roland Barthes coloca o problema pessoal do autor diante da fotografia, mas nem por isso sua leitura deixa de ser fluente e intrigante. Escolhendo exemplos de fotografias que o impressionaram, por uma razão ou por outra, Barthes nos conduz mais pelos caminhos de sua mente, misturando suas recordações e seu passado com a imagem fotográfica (o que não deixa de ser interessante). Ainda não foi traduzido para o português.
Larguei a Faculdade de Arquitetura pela metade, pensando que era fotógrafo. Fui aprendendo pelo meio do caminho, aos trancos e barrancos, por um "método" lentíssimo e absurdo: o "autodidatismo subdesenvolvido". É mais ou menos assim: você pensa que é um gênio, embora só faça besteira; erra o tempo todo e, por não ter nenhuma referência, não pode ao menos sabê-lo; pode levar anos para descobrir aquilo que qualquer instrutorzinho teria logo ensinado etc.
Talvez por isto, decidi fazer uma escola de fotografia. Em 1968 nascia a enfoco. Nos oito anos de sua vida ela me absorveu tempo integral (em 74, somou-se à escola a primeira galeria especializada em fotografia do Brasil).
Depois, trabalhei no Governo do Estado, em diversos setores.
Acabei sendo nomeado presidente da primeira Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas do Conselho Estadual de Cultura.
Hoje, escrevo um pouco por aí...
Ao se preparar a segunda edição deste livrinho, quase trinta anos após seu lançamento, a Editora Brasiliense propôs uma revisão e atualização do texto original. Achei melhor manter o texto original, de 1982, quando a fotografia digital - nele apenas mencionada - mal engatinhava. Aqui procuro justificar esta decisão.
O livro não se propõe a ensinar uma técnica, apenas tenta responder à pergunta do título da coleção: "O que é...?", neste caso, Fotografia e a mudança do filme fotoquímico para a foteletrônica, o surgimento da fotografia digital, foi um salto imenso, com conseqüências demais para caber em uma 'atualização'. Além do mais, o livro retrata, por acaso, o momento inicial da fotografia digital, seu nascimento e acho oportuno preservar o texto original, como descrito na ocasião. O livro permanece, assim, uma visão daquele ponto de vista, de 1982, testemunho daquele instante.
Ao que tudo indica, a essência da imagem fotográfica permanece intocada: o fascínio intrínseco da cristalização de um instante fugaz, "poder olhar as coisas devagar", para o deleite de um olhar curioso que desfruta e explora a imobilidade da imagem, a abundância de minúcias. Porém, ao reduzir muito o custo da câmara fotográfica, a ponto de a embutir em telefones e outros aparelhos, a nova tecnologia provocou mudanças importantes no comportamento coletivo em relação à Fotografia.
Entre tantas inovações derivadas da fotografia digital, assinalo, aqui, duas, por mera provocação: primeiro, a onipresença de câmaras fotográficas, sempre prontas a registrar qualquer anormalidade no desenrolar esperado dos acontecimentos, afeta de muitas maneiras nossa relação com essas imagens, seja pela quantidade, seja pela ameaça à nossa privacidade ou outras implicações. Segundo, é de se registrar o abalo da credibilidade antes atribuída à fotografia, inclusive como prova em tribunais, diante da facilidade de se modificar uma imagem fotográfica com programas como o Photoshop. Seu valor de prova, de documento, desmorona ante as possibilidades quase infinitas de manipulação e modificação.
Nascida sob a influência de uma Pintura demasiado acadêmica, a Fotografia se torna, à medida que a câmera vira uma esferográfica da imagem, ainda mais democrática ao prescindir ainda mais de dons e talentos especiais.
Por fim não se é mais o mesmo trinta anos depois. Já não concordo mais com muito do que me parecia certo então. Hoje, escreveria um outro livro, ainda que a Fotografia continuasse como era.
Por tudo isto, preferi fazer apenas uma revisão para corrigir algumas imperfeições, inevitáveis em qualquer texto, pondo à parte qualquer tipo de 'atualização'. Assim, que fique este livrinho como um retrato da Fotografia naquele ano de 1982. Querer alterá-lo agora seria como tentar pôr no chão o pé congelado no meio do passo pelo instantâneo.
Com certeza a Editora, no momento adequado, surgirá com um novo título nesta coleção para explicar o que é Fotografia digital.
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