Mais branca que branco de anúncio de sabão em pó, a flor da datura, o longo e esguio cálice também chamado lírio, recebia de chapa o sol forte de um céu azul com poucas nuvens. Abria-se apenas a flor imaculada e escondia ainda seus estames, seu pistilo, pregadas as bordas em forma de estrela de cinco pontas. Contra o fundo de vegetação, chegava a incomodar o intenso alvor daquela flor. Quando teria o macaco começado a colecionar? Conchas? Cascas de banana? Pedras? Gravetos? - ah, herdamos o vício das coleções! Ou estaria a cobiça por trás do ímpeto de colher a flor e exibi-la, cadáver, num vaso com água? Teceram-se em intrincadas tramas nossas entranhas! A par do costume de enfeitar nossas casas com órgãos sexuais amputados de plantas, nos horroriza ainda um palmo a mais de coxas de fora, é claro, se forem belos e femininos tais membros. O pudor parece ter raízes mais rasas, coisa mais distante do macaco. Emblemática, a folha de parreira assinalou a perda da pureza e, impuros, nossos corpos nos amedrontaram. Inventava-se a nudez concomitante com o pecar. Nesse cadinho se forjava o desejo e o prazer e a banal genitália o deixava de ser. Nívea, a flor de datura desprega as bordas para vestir saia rodada com muito babado. A linda flor cumprirá sua sina de órgão sexual cheio de néctar a atrair abelhas, mas se um galho cair, dele brotarão outros pés, alheios às vantagens da permuta de genes. A vida se multiplica furiosamente e nos traz de volta ao simbólico Gênesis, à ordem mais respeitada: "crescei e multiplicai-vos". "Fazei-o despudoradamente", poderia ter complementado o locutor. Nos roteiros se lia: "locutor em off" para uma voz invisível contar o que a imagem era incapaz de dizer. Abominava o recurso e perguntava: mas que voz é essa, a voz de Deus? E a vergonha se tornou marca da maldade. |
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