"Proibida a entrada de mocreias, lampreias e tracajaras" O cartaz estava bem visível, na parede da sala. A sala estava numa casa dividida por três ou quatro rapazes. Dito isso, suponho que você tenha entendido, como eu, como qualquer um, o recado do cartaz, apesar de não existirem duas, das três palavras que definem os espécimes cuja entrada se proíbe. Tampouco lampreia, no cartaz, faz alusão ao peixe ciclóstomo, mui saboroso segundo o Aurélio. Mesmo assim, era mais do que óbvio o que o cartaz queria dizer. Poderia ter sido mais grosseiro e dizer, apenas: mulher feia não entra - numa variação da célebre inscrição da placa do clube do Bolinha... Sim, diria o leitor apressado, até aí morreu Neves, aquele que sempre morre e ninguém jamais soube quem é. Grande novidade! - juntaria outro, cheio de ironia - o poeta pediu desculpas às feias - está certo -, mas foi taxativo: "beleza é fundamental". Agora, vem esse aprendiz de cronista chover no molhado?
Tenta-se, responderia esse aprendiz, tenta-se como as nuvens com as melhores intenções, mas nem sempre é fácil à nuvem chegar a âmago do sertão. Claro, não quero chover em Ubatuba, que meu amigo afirma ser o penico do mundo, mas onde se escondem as palavras mágicas para o mar virar sertão e do sertão fazer um mar? Não venho cantar a beleza da mulher - escutem os poetas, o rádio, leiam a Bíblia, vejam os filmes, os cartazes, parem um pouco na banca de jornal... Menos ainda viria especular sobre todo poder que essa beleza traz. Peguem os livros de história, perguntem aos mais poderosos... O que quero - nuvem em busca de um Saara - é falar dos cães... Ora, dona Sabrina, não se sinta ofendida! Não há qualquer comparação entre os belos rostos das capas de revista e as cadelinhas no cio...
É bem óbvio que não posso saber o que e como sente um cão. Posso imaginar, supor, inferir, emprestar ao meu cão sentimentos humanos e argumentar que somos todos bichos, comemos do mesmo jeito, com uma fome que parece igual, bebemos com uma sede também igual nas aparências, além de outras urgências e azares do corpo, que vejo tão semelhantes, em mim e em meu cão. Coçar, por exemplo. Mas a despeito das aparências, nunca vou saber, de fato, o que e como sente um cachorro. Alguns chegam a falar do que um cachorro é capaz de pensar! Ora, guardadas as proporções - e vou repetir três vezes: guardadas as proporções! Isto é: sem esquecer a diferença das distâncias - guardadas, pois, as proporções assim como nunca fui um cão e, se o fui nas hipotéticas "outras encarnações", nenhuma memória persiste, sendo, para todos os efeitos, como se nunca o tivesse sido, assim também nunca fui mulher... é claro, e a dona Sabrina, em contrapartida, nunca foi homem. Aí está a maravilha!
Vai daí que, como jamais poderei saber se um cão pensa ou ter qualquer certeza a respeito de seus sentimentos, da mesma forma, posso na melhor das hipóteses imaginar como as coisas se passam nas entranhas de uma mulher... Já fui quase apedrejado por tentar falar da paixão pela vida, sem saber que a palavra estava carregada de tais e tão terríveis significados impossíveis de alijar. Fosse eu um cão e gostaria dos ossos, do ofício, ou não. Agora fica esta idéia fixa, parada diante de meus olhos, como mosca varejeira: zumbindo e brilhando ao sol. Sei que virão outros clamores mas - que fazer? - sei apenas vomitar minhas entranhas e, é claro, dona Sabrina, não as poderá compreender...
Tentemos, então. Dizem biólogos, zoólogos ou outros ólogos mais que os cães dão tanta importância ao aspecto quanto nós, humanos, aos odores. Sendo assim, imagino que o fato de uma cadelinha ser mais bonitinha, menos ordinária em aspecto, signifique muito pouco na determinação do comportamento de um cão. Eu, por outro lado, jamais poderei saber quais outros cheiros comandam e definem as atitudes de um cão. Simples, não? Nós, ao contrário, antes de todos os outros sentidos, somos bichos visuais. Até os sons, transformamos nessas letrinhas aqui!
Dizia: simples, não? Um cheiro desencadeia uma série de mecanismos biológicos herdados de antepassados, que podem remontar às bactérias, e faz com que um cão se comporte assim ou assado. Ao que parece, são mecanismos poderossíssimos! Nos seres humanos, não seria óbvio que mecanismos equivalentes pusessem em movimento impulsos igualmente poderosos, só que comandados pela visão em vez do olfato? E voltamos à frase do poeta, que traduz a bagunça da alma de todos nós: beleza é fundamental. E chegamos, mais uma vez, ao tema da crônica no momento mesmo em que ela já vai acabar: acredito que a importância, o papel e a função biológica da beleza é muito diferente para o homem e para a mulher. De cara, como o objetivo do Arquiteto de tudo isso é, antes de mais nada, garantir a existência da próxima geração - e, assim, da Espécie - torna-se importante que os comportamentos do macho e da fêmea sejam complementares e, não, idênticos. Para complicar, o Homem, além do bicho que é e que traz em si, é mais...
(Quem sabe, voltaremos a falar disso, do fundo de um harém
de belas damas com um cartaz na porta: "Proibida a entrada
de mocreias, lampreias e tracajaras"...)
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