Nossos sonhos são feitos de nós, tecidos de lembranças, recentes ou remotas e sabe-se lá quão remotas, eventualmente, herdeiros que somos de tantos passados. Tramam-se à nossa revelia em urdiduras que somem em profundezas inalcançáveis, prontos a nos surpreender. De repente, acordei. Acordei com saudade do sonho que não era capaz de lembrar. Sentei-me à beira da cama em busca do sonho, mas ele escapara. Escapara como falta de luz por raio ou queda de árvore. Depois da certeza de não restar qualquer vestígio, decretei morte súbita e o deixei intocado nos mistérios oníricos. Dormi outra vez, tomado por sonhos burocráticos, chatíssimos, em repartições, elevadores, becos, bares imundos, ante-salas atapetadas e sem janelas, secretárias velhas e formais, gordas em terninhos ridículos. É verdade que apareceu em meio a tanta realidade sonhada uma moça ruiva, de cabelos curtíssimos, que se engraçou para o meu lado. Percorremos juntos corredores e fileiras de mesas abarrotadas, desfilamos diante de funcionários bem amestrados e com certa revolta contida em sorriso forçado. Saí do sonho sem saber seu nome, sem conseguir um lugar e tempo que nos coubesse, a nós. Era alta, com sardas a combinar com a cor de seus cabelos, nariz proeminente. Abracei-a por trás, quando tinha os braços caídos junto ao corpo, mas o sonho não nos permitiu um beijo. Cismei que era judia. Saí mal-humorado daquele mundo de formalidade e entraves governamentais.
No mundo real, da vida e morte deste corpo capaz de sonhar, o sol logo dissipou a névoa e pintou de azul o céu. Freios a ar, poderosos, alertaram para a chegada de dois caminhões grandes e fedorentos, que logo foram seguidos por um trator, capaz de destruir um barranco e, com a terra, encher em pouco, tempo a caçamba dos caminhões. Um barulho infernal. |
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