autor sem barba - 1999  crônica do dia

Ficção

06/10/06


Morava em mansão imponente, em rua sossegada de um bairro chique e tradicional. Crescera entre as vantagens e desvantagens do luxo e da fartura. Naquela noite quente de outono, chegou com uma calça jeans e uma blusa leve, de cambraia de linho branca. Como o costume de então, não usava sutiã e seus seios pequenos se insinuavam sob o pano.

Ele, mesmo à revelia, voltava o olhar àquela provocação visual. Esta, como outras, as mulheres dominam e usam como se tudo se passasse por mero acaso. Ela era bonita sem exagero, bonitinha, mas sensual em tudo - no modo de falar, de andar, de gesticular, de respirar... Para o olhar dele, aqueles seios soltinhos sob o tecido diáfano, com os bicos bem marcados, ora mais distintos, ora menos, eram como mosca a importunar, que se espanta e volta.

Ao final da cerimônia, já havia um entendimento visual entre ambos tão grande, que imediatamente se afastaram do grupo e foram direto ao assunto. Dali saíram noite afora. Noite adentro, para quem assim preferir. Beberam juntos e tiveram tempo de começar a se conhecer, saber do outro, sobre os outros, pois ambos tinham lá seus companheiros - namorados, cônjuges, que importa? - e, apesar deles, estavam ali, nos braços um do outro, nos lábios perdidos... ou achados, para quem assim preferir.

Ele ainda foi vê-la uma tarde, em sua casa, antes da partida. Combinaram de se escrever, trocaram endereços e combinações mesquinhas, para esconder tudo dos outros, sobretudo dos outros dois. Depois ela embarcou para a Europa e ele não foi ao aeroporto.

Antes de subir os letreiros finais, é preciso que se diga que nunca houve carta alguma, pois poucas horas depois, rádios e televisões noticiavam o desastre aéreo e, nas listas dos sobreviventes, não apareceu o nome dela.

A realidade se tece também de ficção e vice-versa.


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