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Capilaridade01/03/05Uma névoa espessa escondia tudo a mais de cem metros na manhã que inaugura o mês de março. Dia 20, o sol iluminará os dois pólos. Depois, por seis meses continuará dia no pólo norte e, no pólo sul, não se verá o sol. O que não enxergamos parece não existir, mas está lá, além da névoa. A mesma montanha, a antena grotesca, as mesmas árvores, casas e casebres. Ao cão, parece existir apenas o que pode farejar. O homem precisa ver. Ainda era cedo e, embora encoberto, o sol já nascera há quase uma hora. A conversação animada anunciou a aproximação de três mulheres que, outrora, seriam chamadas apenas de "empregadas". Depois, houve preocupação com a nomenclatura, com a legislação, com o "politicamente correto" com direitos disso e defesa daquilo. Hoje, não sei mais como dizer. Ao passarem, uma contava, com voz fanhosa a distribuir enes entre sílabas: "eu fun-in na prefeitura e pindi um imposto econômico. Inmagina, si vou poder pagar três meses de inmposto..." e seguiram. Duas mais velhas de corpo conformado, na certa, pelas gestações e outra jovem, de corpo rijo e pronto para a futura filharada. Esta, metida em calça jeans, clara que, de tão justa, propunha a questão de como se enfiara ali. Não ouvi nomes. Seja Izilda, pois, a do "imposto econômico". Uma hora depois, não havia névoa, o sol já ensaiava algumas sombras e, embora veladas, viam-se as árvores imponentes a dois ou três quilômetros, mas as montanhas ao fundo, ainda não. Há milhões e milhões de Izildas a percorrer, cada manhã, o mesmo caminho para trocar um dia de vida e energia por um punhado de sonho, uma dose de ração e uma baforada de ilusão. Há, também, milhares de milhares de prefeitos e vereadores e deputados e senadores e presidentes e ministros e ditadores e tiranos e uma sinistra capilaridade que os une. Uns não vêem os outros e o ser humano só acredita na verdade de seus olhos.
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