Ali não se encantava serpente, mas o ofídio encantava os passantes a se estender por cangote e ombros do pregador de praça pública, munido de uma bíblia em uma mão e, a outra, a manipular a cobra, grossa e longa, como atrativo congraçador capaz de reter olhares, atrair transeuntes e os manter ali, quase hipnotizados pela expectativa do bote eventual e repentino. Quando migrei para este aglomerado gigantesco, há quase meio século, esta cena muito me impressionou.
O orador falava de Deus e das proezas de um povo de remotas paragens, de Galiléia, Canaã, Nazaré e mais vilas de sertões de água pouca e rios rasos, no centro de amplo círculo em plena Praça da Sé, enquanto a roda de gente se espremia e alargava - além do sermão e da cobra, o velho "macaco vê, macaco faz" traria mais pessoas à roda quantas mais ali se amontoassem - e, no centro do amplo círculo, dizia, jazia a lata meio enferrujada, à guisa de chapéu a engolir moedas e uma ou outra nota de dinheiro.
Minha perplexidade diante da cena a marcou em mim até hoje. Olhava pasmo a multidão, por longo tempo de pé a ouvir a zoaria, fascinada, como outrora Eva, com o réptil imenso enroscado no orador e alheio à pregação. Ouvi, então, de meus botões: neste lugar sempre existirá público e cliente para qualquer coisa! Ouvi, assombrado com cena e o constante percutir da esmola na lata velha. Por fim, afastei-me sem saber o porquê da cobra naquele enredo.
um candidato [imagem da internet]
Hoje, quarenta e quatro anos passados, me vejo outra vez perplexo ante esse outro nordestino a hipnotizar um país, sem cobra nem o brandir do livro milenar, mas igualmente capaz de maravilhar a multidão com sua fala errada, mansa ou irada, além da velha pregação, enganosa como toda catequese. Mui sagaz na manipulação de emoções coletivas, fará pingar votos na urna como, ali, moedas na lata.
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