Crônica do dia

Chuvas

17/11/06

Os vidros escuros do andar alto embaçavam ainda mais o horizonte amplo da cidade poluída. Quando ela se debruçou com o grupo sobre a prancheta e o projeto, seu gesto descuidado impôs à visão imagem mais intrigante que o horizonte de esfuminho.

Ele, que nada tinha com o projeto em discussão, via agora, à altura dos olhos, sobressair uma calça branca de tecido leve que deixava transparecer outra, minúscula. Pura provocação. Abandonou a remota panorâmica por outros devaneios, à moda de Buñuel.

"... nossa imagem interior do mundo exterior é, ao mesmo tempo, vívida e acurada, o que nem é surpreendente, face ao fato de que os seres humanos são animais altamente visuais. O olfato humano, em contraste, é muito vago." A frase merece destaque por ser de quem é: F. H. C. Crick, Nobel de medicina, em 1962, com Watson e Wilkins, por desvendarem a estrutura em dupla-hélice da molécula de DNA e o esquema de sua replicação.

Meu deus!, divago para evitar devaneios! Ele, não - frente aos fundos da calça branca, abandonou-se à imaginação. Finda a reunião, saíram todos a almoçar onde, além de bom pasto se serviu nobilíssima caipira, tão nobre que seria injusto chamá-la pelo diminutivo. Além de nobre, acabou por levá-los - aos dois - direto para o apartamento da amiga onde ela se hospedara - sim, era de fora, gaúcha, chê.

imagem recebida por e-mail
imagem recebida por e-mail

No apartamento amplo, de fundos, em prédio antigo, ela abriu vinho da serra gaúcha. Brindaram e não precisou muito para se verem cantando na chuva em tarde ensolarada de céu azul, sob um chuveiro elétrico vagabundo, em minúsculo box, meio bêbados e meio perdidos entre chuvas e escorregões.

Às vezes, tempestades de verão trazem no bojo tormenta e tristeza. Eles não poderiam imaginar que a chuva, que começou leve e gostosa, pudesse depressa se transformar em tempestade tenebrosa, mas aconteceu.

|home| |índice das crônicas| |mail| |anterior|

2454057.732