Sob a espada de um anjo exterminador resplandece a criança embalada em medos, batinas e algum latim. A inveja do homem se manifesta nos atributos dos deuses. Emprestamos às divindades todos poderes sonhados, que nos parecem, ou são, inatingíveis. É o truque barato com que se tenta engabelar a esfinge diante do desafio que apavora.
Péssimo - diria o juiz que adormece em nós. Péssimo, pelo sabor de fruto da árvore do paraíso, a tal, do discernimento do bem e do mal. Péssimo, por tanta inveja dos deuses e por negar toda investigação, qualquer questionamento. Por assinalar a total ausência da sagrada sede de saber, como dizia Einstein. Mera aceitação.
Condição humana, demasiado humana, que amalgama num mesmo ser as limitações do animal e do senhor dos juízos, da razão que simula e cria divindades. Este ser híbrido de deuses e bichos, há milênios busca e não acerta a senda dos olimpos mas, ao contrário dos animais, tem a consciência prematura da própria morte e a ignorância cabal do que seja, de fato, morrer. E na face da esfinge, um sorriso parece desafiar e zombar.
O anjo exterminador, meras palavras que impressionaram o cineasta a ponto de virar título gratuito de uma obra de Buñuel; a sagrada sede de saber, mais sagrada na boca do pai da nova Física e o Humano, Demasiado Humano, que marcou um clarão de lucidez de Nietzche, na obra de mesmo nome, são citações apenas, estéreis como qualquer citação. Palavras mortas, como as que aprendemos a repetir, como alguns animais, para falar com os deuses...
Ah, a brutal inveja dos atributos divinos! Desses seres que criamos - ou a nós se impuseram? - isentos da sombra do anjo exterminador, da ceifadora de vidas com seu manto e sua foice. Alheios às mazelas da ditadura das tripas, dessa necessidade tão humana, demasiado humana, de comer a cada dia e excretar as sobras da véspera. Desses seres que independem da sagrada sede de saber, pois conhecem o fim e o princípio de todas as coisas e detém a visão lúcida do bem e do mal, sem jamais terem sido instigados pela serpente, pois fruto algum é proibido àquele que está em toda parte, ao mesmo tempo e, portanto, jamais terá que revertere ad locum tuum.
Publicada quinta-feira, 15 de julho de 1999
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