A leitora perspicaz sorri do cronistaprendiz antes mesmo do primeiro "A". Brindemos, pois, à sua perspicácia e nas formas transformadas pelo líquido na taça, nos abandonemos aos devaneios próprios desse relaxar.
Ontem quis dizer e não disse e falei o que teria preferido calar. Não carece apontá-lo, ela percebeu. Percebeu e, com certeza, cogitou lá com seus botões de madrepérola: "macaco, olha teu rabo!" - por isso, já sorria, antes do primeiro "A". Tim-tim.
Vivemos a estação das promessas. A colheita fica pra depois, prometem. Profetas e oráculos dos tempos modernos costumam botar as manguinhas de fora quando se aproxima o final do ano. Diante do final do século e o do milênio, vão pôr muito mais que apenas manguinhas. Vale tudo! Outrossim, poucos sobreviverão para conferir as previsões.
Sandra Carvalho, diretora de redação da revista Info Exame, comenta em sua coluna, "O Livro do Mês", na edição de março da revista, o livro "The Age of Spiritual Machines", de Ray Kurzweil. Diz a jornalista que o autor é "uma das mais brilhantes mentes do mundo da tecnologia atual" e enumera algumas previsões, que a mente brilhante faz no livro comentado.
Em vinte anos, afirma, um computador de mil dólares - note que o padrão de avaliação básico de tudo, pessoas e coisas, ao que tudo indica continuará o mesmo: dólares. Você ou o seu computador continuarão medidos pelo conteúdo em dólares - naquela data, ela conta, um computador deste preço "terá poder aproximadamente igual ao do cérebro humano." A diretora não diz o que isso significa, exatamente. Como se mede o "poder do cérebro humano", como se compara esse poder ao poder de um computador. Também não diz se o autor esclarece essas dúvidas no livro.
Se esta afirmação peca pela falta de rigor científico, a seguinte equivale a profetizar a chegada de um imenso dragão cuspindo fogo pelas ruas de Niuiorque a procura de um santo chamado Jorge. Vale tudo! Eis as outras profecias:
Dez anos depois, daqui a trinta anos, portanto, o profeta "do mundo da tecnologia atual" - talvez não fale do nosso, mas de outro, em órbita de outra estrela - prevê que um computador do mesmo preço (isso parece não mudar!) "terá o poder de cerca de 1000 cérebros humanos". Será que você, leitora perspicaz, pode me explicar como se somam os poderes de cérebros humanos. Mil cérebros de Da Vinci têm o mesmo poder que mil cérebros da Filó, a dona Filomena? Poderá se dizer que, se um computador de US$ 1 000,00 tem o poder de mil cérebros humanos, cada cérebro dos nossos vale um dólar? Furado? O dólar ou o argumento? Nada disso a revista esclarece e nem conta se o livro explica.
Todavia, mesmo longe de Delfos, o senhor Kurzweil desafia o tempo e inteligência do leitor. Para o final do primeiro século do próximo milênio, dentro de cem anos, segundo a senhora diretora da revista, "não haverá mais distinção clara entre seres humanos e computadores!" Li e reli a afirmação. Era exatamente isso que estava lá. Havia o "clara", para tornar as coisas um pouco escuras. Poderá haver uma distinção, mas não clara. Talvez...
Querida Sabrina, há quanto tempo! Sua idéia me parece ótima, tenho que concordar, como não? Poderíamos começar já uma lista de possíveis dicas para ajudar nossos bisnetos a diferenciarem um ser humano de um computador. Brilhante!... Talvez, se ficarem em "eterna vigilância" - como recomendava aquela turma, afirmando ser esse "o preço da liberdade", se houver a vigilância eterna, quem sabe, ao surpreenderem um dos dois, homem ou máquina - tá bom, dona Sabrina, mulher ou máquina, ao surpreenderem o ser indistinguível no momento de... digamos, ir ao banheiro, talvez... pelo jeito de caminhar, talvez... pelo andar de quem está apertado, as coxas meio juntas... Ora, Sabrina, será que os computadores também...
Publicada em 16 de março de 1999
143