"Foi o caso que estando lá a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte."
O trecho, pelo estilo já identifica o autor. Está no prefácio do livro "Terra", com fotos de Sebastião Salgado. Se ouso repeti-lo pela enésima vez , é pura admiração à fala precisa de José Saramago e a convicção de que seria incapaz de o dizer com tanta beleza e exatidão.
Saramago escreve cheio de revolta com a situação dos lavradores que, no Brasil, não conseguem uma pequena fatia dos mais de 8 milhões e meio de quilômetros quadrados, destinados, hoje, a 160 milhões. São, por isso, apelidados de sem-terra. Uma simples divisão diz que, para dividir em partes iguais, a cada um caberia cerca de 53 mil metros quadrados...
Chamaram-no de barroco, ao autor, mas pouco importa o adjetivo. Sem dúvida, aquelas 111 palavras são substantivas. Os descendentes de Eva e Adão muito provavelmente se esqueceram de compartilhar a vida a partir do momento em que, também, esqueceram o fato banal, e decisivo, de ser a morte de todos. Estavam entretidos com coisas novas, que exigiam novas palavras - propriedade deve ter surgido ao mesmo tempo que proibir - e isso os ocupava e a suas mentes, na construção de um novo edifício de códigos...
Depois de assim repartirem terras e ovelhas e bodes e colheitas e tudo mais que obtinham da generosidade da natureza, acharam interessante, esses antepassados, estender o conceito às mulheres, como se gado fossem. Seriam mais uma propriedade. Possuir bens passou a propiciar poder e um certo tipo de prazer, derivado da própria posse ou do poder. Com o tempo, a coisa ficou mais fácil. Primeiro, porque os poderosos acumulavam cada vez mais poder e, depois, porque se ia cristalizando a imagem de que as coisas sempre haviam sido como tal...
Surgiram juízes, tribunais, carrascos, para fazer cumprir as decisões e, por fim, os advogados. Alguns se tornaram tão poderosos, proprietários de tal quantidade de terras e bens, que acabaram proclamados reis, imperadores, soberanos, fosse lá com que apelido fosse e - parece que já vem desde o Antigo Egito - para sacramentar o absurdo, diziam-se escolhidos por algum deus...
Depois, não sei bem quando, o dinheiro acabou aceito como um valor universal para representar os bens em qualquer tipo de troca e, aos poucos, as disputas por terras, vacas, carneiros ou mulheres, puderam ser substituídas pela disputa única, por dinheiro. Quanto mais dinheiro, mais possibilidades, de tudo, em potencial. Realizar as coisas passou a ser secundário. A possibilidade de realizá-las, representada pela quantidade de dinheiro, conferia o mesmo poder e a mesma sensação de prazer...
Os filhos, e netos e bisnetos continuaram nesse rumo. Os meios - deveria dizer ardis - para obter dinheiro, se tornavam cada vez mais complexos, cada vez mais sutis. Alguns se especializaram em convencer multidões de que precisariam de uma série de coisas prescindíveis. Assim, se canalizaria dinheiro para os fabricantes dessas inutilidades - algumas, com o tempo, até se provaram nocivas, além de dispensáveis. Outros, se especializaram nos jogos de argumentação, para manter a aparência de justiça em tribunais sempre sensíveis ao dinheiro e ao poder. Criaram-se novos bens, arbitraram valor e transformaram em propriedades o que um homem produz, com as mãos ou com a inteligência e, a esses valores, pouco importava se se tratava de alimento da vida ou da morte...
Hoje...
Publicada em 15 de março de 1999
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