As dragas portuguesas chupavam areia do fundo da baía de Guanabara e a cuspiam longe, junto à orla adornada de parapeito recortado com capricho no granito em obra de cantaria cada dia mais rara de se ver. Impossível adivinhar que o nascedouro do aterro do Flamengo seria também o sumidouro daquelas pedras esculpidas a mão e polidas a fundilhos de calças e saias de milhões de namorados. Na alvorada dos sessenta tudo parecia luzir. O Flamengo time, que recendia a um tricampeonato e o Flamengo bairro, poder até a véspera, vizinho de palácios, do Catete, das Laranjeiras, chique e com a decadência apenas no horizonte. Nessa paisagem o Morro da Viúva parecia resumir o universo, com sua curvatura arrogante a lhe afastar do burburinho.
As areias despejadas pela draga traziam conchas. Muitas conchas. De todo tipo, de todo tamanho e em todos os estados. Multidões de conchas a competir em número com os grãos de areia. Conchas que dormiram séculos, milênios no fundo escuro da baía de Guanabara, voltavam à luz. Algumas eram tão velhas que mal se lhes podia adivinhar conchas - um caco fosco, pedaço branco, carcomido. Comecei a andar pela nova terra conquistada ao mar e a catar conchas. Virei um colecionador de conchas! Em pouco, tinha dois sacos de supermercado - então se usavam sacos de papel pardo, grosso em vez das atuais sacolinhas plásticas - já colecionara, dizia, dois sacos gordos de conchas. Algum tempo olhei aquilo sem saber o que fazer das carapaças de moluscos, que desfrutaram o Rio muito antes do que portugueses, franceses, holandeses, tupis, guaranis, tupis-guaranis e sabe-se lá quem mais. Por fim, compreendi que elas nunca me serviriam, meros vestígios de vidas há muito extintas. Marcas mortas do que já não existia. Traços do que fora e não é mais, como estas lembranças que se anotam aqui. Joguei tudo fora. |
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imagem de satélite de: "1 Meter Scene of Rio de Janeiro"