'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991] 

Controle remoto

30/03/09

Os latidos incomuns me deram a certeza de novidade no pedaço. Encontrei o cachorro com pêlos eriçados e cada músculo tenso, pronto para disparar. Ele não podia, no entanto, chegar ao que quer que fosse, encurralado em um canto e atrás de pesada caixa de papelão. Alguns gritos agudos, esganiçados, em meio aos latidos furiosos, definiam a cena como de vida ou morte. O que seria o 'inimigo'?

Puxei a caixa, com a ajuda de uma foice e, em ação rapidíssima, só compreensível em câmera-lenta, pôs o gambá, ou saruê, entre as mandíbulas do cão, preso contra o chão, numa poça de sangue e outros líquidos corporais. Um cheiro desagradável se espalhou enquanto o cachorro remordia a presa como se quisesse ter certeza do fim daquela vida.

Chamado por aqui de saruê (regionalismo nordestino para os dicionários), o gambá, um marsupial, é comum por aqui e o dizem até saboroso. Como com os cangurus, as tetas da fêmea ficam numa bolsa, onde amamentam a ninhada. Uma vez, vi passar uma fêmea com o rabo preênsil esticado reto sobre o corpo de onde pendiam vários filhotes, presos também pelas caudas!

Depois, roubei ao cão, sob protestos, o cadáver e saí para o quintal. Ele me seguiu mas, ao sair, viu ao longe um pássaro ciscando o chão. Preparado para a batalha por grandes descargas hormonais, o cão, ainda muito agitado, disparou como flecha em direção à ave. O pássaro voou, vôo raso com a fera em seu encalço. Sumiram na curva. Quando cheguei, o cão farejava o capim e, volta e meia, parava para olhar, intrigado, em direção à jovem palmeira imperial, exuberante com seus primeiros cachos de coquinhos.

O cachorro cumpre os ditames de seu corpo sem o tempero de qualquer raciocínio... Quantas vezes sucumbimos a ordens do corpo à revelia da razão! Hormônios e emoções parecem ter o controle remoto da razão.

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