Conversa passageira

31/05/16

No vagão repleto, sobretudo junto às portas, os passageiros se mantinham no limiar do contato corporal. Alguém se levantou para descer e o assento permaneceu vazio apesar da multidão de pé. Apontei a vaga a uma senhora. Ela agradeceu e declinou.

Percebi, quase atrás de mim, uma cabeleira muito branca e repeti a oferta ao senhor dos cabelos de prata. Também ele preferiu continuar em pé. Entretanto, tocar-lhe o ombro foi como acionar um comando e ele se pôs a falar como se uma velha amizade reinasse entre nós.

Começou por declarar estar vindo de Maria da Graça, mas logo foi mais preciso e especificou: da Cidade da Polícia. Eu o ouvia com atenção, mas sem qualquer questionamento ou comentário. Ele prosseguiu explicando de ter ido lá para investigar "certos fatos" e acentuou esta locução.

Pareceu-me esperar alguma manifestação minha de curiosidade ou, pelo menos, interesse. Diante de meu silêncio prosseguiu com voz mais baixa para aludir ao crime "do momento", o estupro de uma adolescente por um bando de trinta ou mais facínoras, segundo a primeira versão, barbaridade a repercutir mundo afora em poucas horas e a incitar manifestações inflamadas com diferentes opiniões e declarações de ímpetos.

A sussurrar, contou minúcias horripilantes do estupro, detalhes dispensáveis aqui e, em tom quase ameaçador, concluiu: "o senhor escute o que lhe digo, anote bem, pois logo, logo muita coisa vai aparecer neste caso..."

Ele falou isto quando o metrô já chegava à estação e me pareceu enfatizar as reticências. Muitos desceriam ali, inclusive eu. Deixei-o com suas conjecturas imaginando ser aquele também seu destino, pois não quisera sentar. Na plataforma, caminhei um pouco e voltei-me para ver se ele descera: não, seguira com o trem urbano rumo à Ipanema, bairro daquela garota da música...

Tue, 31 May 2016 16:38:48 -0300

nossa, que maravilha, Clode!!!! você é o melhor escritor de crônicas que eu já li!!!!!!! Essa está especialmente impecável, concisa, interessante, daquelas leituras em que o olho GRUDA.
A página também tá sensacional, achei-a diabólica ao abrir, sua cara, o vermelho com contornos, então vi que "ornava com" o conteúdo.

Prêmio pra você! nota 1000000!
Ah, vc repetiu:
Deixei-o com suas com suas

      sem assinatura

Obrigado.
Foi uma cena intrigante. Não sei se se tratava de um policial ou um investigador privado ou maníaco ou o quê. Provavelmente nunca mais nos veremos e "confidências sobre um crime" acabarão por se desmanchar no ar.
Mas o que mais gostei foi achar esse João Gilberto...


Tue, 31 May 2016 14:12:04 -0700 (PDT)

nossa clode, como vc escreve bem

      sem assinatura

Obrigado.

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